quarta-feira, 18 de março de 2009













Os Últimos Dias do Bismarck

(Condensado de «Harper's Magazine») 

Por Edwin Muller


O Couraçado Bismarck era o orgulho da marinha de guerra alemã, e o seu afundamento foi para os peritos navais uma transcendente lição de ordem profissional, que veio coroar vinte anos de experiência na construção de vasos de guerra, e no treino de marinheiros para combatê-los. O triste fim do Bismarck foi, na verdade, a primeira prova real de um grande couraçado moderno, posto em presença de navios e aviões de combate dos tipos mais avançados. Mas, além dos problemas de ordem puramente técnica, havia ainda a considerar, no caso, a questão do moral dos combatentes: que elementos contribuem para manter calmos e firmes os marinheiros, e quais as razões por que êles"perdem a cabeça" no momento culminante do risco?

As marinhas de guerra de todo o mundo lançaram mão dos recursos mais extremos, para coligir o maior número de dados sobre o desastre do Bismarck, sendo hoje possível, graças a isso, relatar os dramáticos acontecimentos que, a bordo do navio, precederam seus últimos
instantes. Todos os fatos, todos os incidentes aqui referidos são, pois, a expressão pura e completa da verdade.

Na noite de 22 de maio de 1941, acompanhado pelo cruzador Prinz Eugen, o Bismarck largava da costa da Noruega, rumo à vasta passagem situada entre a Groenlândia e a Islândia. Na madrugada de 24 o inimigo estava à vista: era a maior nave de guerra inglesa, o velho e famoso cruzador-couraçado Hood. Pouco depois surgia no horizonte outro navio inglês, o Prince of Wales.

Dos dois, foi o - Hood o primeiro a romper fogo contra o Bismarck, que respondeu por todas as baterias. Em seguida os alemães concentraram a artilharia sobre o Prince of Wales: seriamente atingido, este último ficou incapacitado de acompanhar a batalha móvel, que deste modo se transformou num duelo entre o Hood e o Bismarck.

A terceira descarga dos alemães, o Hood vomitou pela proa uma nuvem de fumaça negra, e adernou sobre bombordo; daí a pouco, o famoso vaso de guerra dobrava pelo meio, e partia-se em dois. A metade da ré afundou-se imediatamente, e a outra ficou flutuando alguns minutos, até que, lentamente, se sumiu também nas ondas...

A notícia correu veloz a bordo do Bismarck da popa à proa romperam manifestações de louca alegria. O tombadilho, que ficara deserto durante o combate, estava negro de gente, marujos e oficiais, que cantavam e se abraçavam uns aos outros.

Mínimo era o preço que o Bismarck pagara pela destruição do maior navio da marinha de guerra inglesa: fora atingido, é certo, mas o estrago era o que há de mais banal, e apenas alguns homens tinham ficado feridos.

As manifestações de júbilo duraram todo esse dia e o seguinte. O almirante Luetjens mandou formar a tripulação no tombadilho, e deitou discurso, um dos seus discursos fogosos e triunfantes. Os aplausos trovejaram, e sobre as ondas rolou o eco prolongado e grave do «Sieg Heill» O almirante fazia 52 anos nesse dia, e o fato dava mais relevo ao entusiasmo da vitória.
Não tardou que o rádio lhes trouxesse uma exultante mensagem do Fuehrer: o comandante Schneider, primeiro oficial da artilharia, era recompensado com o grau de cavaleiro da Cruz de Ferro, e outras condecorações chegavam pelas ondas do éter.

Mas eram os operadores cinematográficos do dr. Goebbels que andavam agora mais azafamados a bordo do Bismarck: já tinham filmado o combate com o Hood, e agora registravam as celebrações no celuloide. Em breve, os écrans de Berlim mostrariam ao povo alemão como tivera fim o poderio naval da Grã Bretanha!

A tripulação era constituída sobretudo por mancebos de pouco mais de vinte anos, mas iam a bordo também uns 500 aspirantes de marinha, todos com menos de vinte anos. Essa gloriosa vitória era exatamente o que todos eles tinham esperado com cega certeza. Novos como eram, só vagamente recordavam o que fora o mundo antes do advento de Hitler; na qualidade de membros da Juventude Hitleriana, todos os dias, ao acordar, lhes tinham martelado na cabeça a indiscutível crença na Raça Vencedora: «Hoje dominamos a Alemanha, amanhã será o mundo inteiro.» Uma cousa se tornava agora positiva para eles: a invencibilidade da Alemanha.

E o Bismarck era invencível também! Era na verdade, e de longe, o mais forte navio de guerra de todos os tempos. Fora do Alto Comando Alemão, ninguém conhecia exatamente a sua tonelagem: mas era com certeza muito superior às 35.000 toneladas que os tratados navais impunham como limite máximo. Havia mesmo quem lhe atribuísse 50.000 toneladas... Dizia-se que, durante as experiências, atingira 33 nós por hora, velocidade superior à de qualquer couraçado americano ou inglês.

Olhado de fora, não diferia muito de qualquer couraçado moderno: mas interiormente, abaixo do tombadilho, era um navio incomparável. A partir da linha de flutuação, para baixo, tinha cinco paredes de aço, que encerravam outros tantos compartimentos perfeitamente estanques.
 
Tinham afirmado à tripulação que o Bismarck era capaz de vencer não só qualquer navio inglês, mas toda combinação de navios que contra ele se congregassem. Era literalmente inafundável! E os marinheiros acreditavam nisso.

Havia contudo a bordo alguns homens, de mais idade e experiência, que o não acreditavam; por exemplo, o capitão Lindemann, oficial comandante, sabia que os navios alemães podiam ser metidos a pique como quaisquer outros. Era um oficial competente e calmo, um marinheiro alemão da velha escola, mais do que um fervoroso adepto do partido nazi.

Porém o comando superior fora confiado ao vice-almirante Gunther Luetjens, que era um nazista de alma e coracão: franzino de corpo, compensava a fraqueza física com a truculência do aspecto e a violência do caráter. Era um chefe emocional, capaz de arrastar seus homens ao rubro do fervor... O que a tripulação ignorava, todavia, é que o almirante sofria de crises depressivas, que contrabalançavam seus ímpetos de entusiasmo!

O moral fora sempre elevado no Bismarck, apesar das exíguas instalações da marinhagem. Além dos aspirantes e da tripulação normal, havia a bordo alguns centos de supranumerários, que elevavam o total a 2.400 homens. E as acomodações já não eram muito amplas para a força regular: o espaço que noutros navios se reserva para dormitórios, refeitórios, etc., fora aqui sacrificado à extra-proteção, aos complicados compartimentos do casco. A tripulação dormia à proa, em redes suspensas, tão juntas que se tocavam. À popa, os oficiais de menor patente se apinhavam aos quatro em cada camarote. O convés da mess era escuro e sem ar. Mas todos compreendiam que o desconforto era o preço a pagar pela superior resistência do couraçado. Ali, como em terra, o princípio reinava— «canhões em vez de manteiga»... .

Entre os homens da tripulação faziam-se hipóteses sobre o destino que o navio levava: pensava a maioria tratar-se de uma expedição de corso contra os navios mercantes da Inglaterra, do género que Luetjens levara tão brilhantemente a cabo, com o Scharnhorst e o Gneisenau. O número de marujos supranumerários tornava a hipótese lógica: eram talvez as tripulações destinadas aos barcos que fossem apresados... Alguns tinham ouvido dizer que o Bismarck ia tomar os Açores para o Reich; outros afirmavam que ia juntar-se à esquadra japonesa, no Pacífico. De todas as explicações, esta era a menos provável, pois os tripulantes não tinham recebido nenhum equipamento tropical.

Após o combate, o objetivo da excursão se esclareceu: ela tinha por fim destruir o Hood!
Mas o júbilo resultante da vitória não podia durar indefinidamente, e a reação inevitável declarou-se no segundo dia. O Prinz Eugen virou de bordo, e regressou à Alemanha. O tempo fizera-se fusco e frio, com borrascas intermitentes de granizo, neve e neblinas. A maioria dos homens do Bismarck tinham pouca experiência do alto mar, esse vasto deserto, e começaram a sentir-se longe da pátria, e sós...

Não tardou que percebessem estarem sendo alvo de caça. Ao largo da ponta sul da Groenlândia, na manhã do dia 26, ouviu-se o ruído de um avião, e daí a pouco um Catalina, de fabrico americano, saía dum rasgão das nuvens, quasi mesmo por cima do couraçado. Todos os canhões anti-aéreos começaram a bradar, erguendo uma barragem tremenda, e o avião desapareceu.

Mas pouco depois outro avião surgia, vigilante. A tripulação sentiu que uns braços longos, ameaçadores, se estendiam de terra para os agarrar...

Começou então a circular a bordo um estranho boato: o almirante Luetjens e o capitão Lindemann tinham tido uma violenta altercação. Alguém ouvira, através das portas fechadas, a voz irritada do almirante, gritando. Lindemann tinha tentado fazer prevalecer o seu plano de regresso imediato à Alemanha, visto que os ingleses iriam certamente concentrar todas as suas unidades disponíveis na caça ao Bismarck, e não descansariam enquanto o não apanhassem na rede.

Irritadíssimo, Luetjens opusera o seu veto à sugestão, e mandou anunciar aos marinheiros que os ia conduzir a novas e retumbantes vitórias. O pessoal o aclamou, e todos se sentiram aliviados.

Apesar disso, os homens ficaram de olho no horizonte cinzento, esperando a chegada de reforços.

No dia seguinte, porém, não foi ajuda que chegou: ouviu-se o zumbido de um enxame de gigantescas abelhas, e uma esquadrilha de aviões veio pelos céus afora,—as aeronaves da Real Marinha Inglesa; os «peixe-espadas» tinham enfim encontrado o seu alvo! Precipitavam-se lá de cima, um após outro, até quasi roçar nas ondas, largavam os torpedos, e disparavam para longe.

Um torpedo acertou justo a meia nau, erguendo no ar uma coluna de água mais alta que o mastro grande, e o couraçado estremeceu de popa a proa. A brigada de reparação verificou que um dos compartimentos estanques fora arrombado e se enchera de água.

O estrago não era decisivo, mas a-pesar disso teve efeito profundo no estado de nervos do almirante Luetjens; é provável, também, que nessa altura a rádio lhe tenha levado a incômoda notícia de grandes formações navais inglesas, que a toda a força convergiam para o Bismarck.

Essa notícia, conjugada com o ataque aéreo, era o bastante para provocar uma reviravolta completa no ânimo de um homem com o temperamento do almirante, que ia facilmente do entusiasmo ao desespero.

Convocou a tripulação, e fez-lhe um discurso espantoso, afirmando que o Bismarck ia ser forçado a travar batalha; a sua esperança era que os aviões e submarinos alemães acudissem a tempo, para amortecer o choque das forças britânicas: se não, o Bismarck arrastaria para o fundo, na morte, mais de uma unidade inimiga... «Marinheiros,—gritou no auge histérico—lembrai-vos do vosso juramento! Sede fiéis ao Fuehrer até à morte!»

Não precisava mais: o efeito dessas palavras foi devastador naqueles rapazes. Tinham-lhes assegurado que eram invencíveis, que o navio não poderia ir a pique. E agora, assim sem mais nem menos, vinham-lhes falar de morrer!...

Para reparar os efeitos da gafe do chefe, fez-se circular um telegrama entre a marinhagem: a ajuda já estava a caminho, dizia ele: aproximava-se uma flotilha de submarinos, e não tardaria que mais de duzentos aviões viessem voar sobre o Bismarck.

É possível que essa notícia fosse inventada do começo ao fim, mas a tripulação acreditou. O ânimo restabeleceu-se. Todo o dia os homens exploraram com os olhos o horizonte...

Depois do combate com o Hood, o Bismarck tinha rumado para sudoeste, c mais tarde para o sul. E agora, três dias corridos sobre a batalha, tomava o rumo do cabo Finisterra, na esperança de alcançar as águas territoriais da França, e navegar, chegado à costa, até porto de salvamento.

Mas, ao cair da noite, um esquadrão de «peixe-espadas» deu outro ataque repentino, acertando três vezes no alvo: dois dos torpedos pouco dano causaram, mas o terceiro atingiu o aparelho de direção, torcendo os lemes. E o couraçado começou a navegar em círculo, como uma fera que se arrasta...

A atividade a bordo se tornou frenética. Prometeram a Cruz de Ferro ao homem que fosse capaz de reparar os lemes. Pararam as máquinas, e um mergulhador foi por cima da borda. Fez esforços estrénuos, mas, quando o Bismarck se pôs de novo em andamento, continuava a navegar em círculo!

A vida normal do navio entrou em desorganização; gritava-se, e os homens corriam de um lado para o outro, desorientados. Em plena confusão, chegou esta mensagem do Fuehrer, que mais parecia uma ironia do destino: «Todos os nossos pensamentos estão com os camaradas vitoriosos».

Procuraram então, desesperadamente, dirigir o navio por meio das máquinas: mas o couraçado parecia ir coxeando lentamente, a dar guinadas para a esquerda e para a direita, como um ébrio.

Era uma da manhã, quando surgiu da treva uma flotilha de destroyers ingleses. Cercaram o Bismarck como a matilha cerca o urso ferido, e agora um, depois outro, aproximavam-se rapidamente para lançar-lhe um torpedo. Outros compartimentos foram atingidos e inundados.

O número das baixas aumentou.

Então, o comando do navio tentou dar uma nova injeção de moral nos seus homens. Desta vez a mensagem era terminante: «Pela madrugada virão rebocadores dar-nos auxílio, e oitenta aviões».

Alguns ainda acreditaram: não porém Luetjens. Teve então um gesto eloquente, e mandou a Hitler o seguinte rádio-grama: «Lutaremos até ao último cartucho. Viva o Fuehrer, chefe supremo da Marinha».

Foi o seu fim: ainda houve quem o ouvisse através da porta, gritando como louco: «Faça o que quiser! Para mim, acabou!».

Na manhã seguinte o tempo estava enevoado, e um vento frio fustigava o oceano, eriçando-o de espumas. Surgiram do horizonte os pêsos-pesados da Grande Armada Inglesa, o Rodney e o George V, que imediatamente abriram fogo com os canhões de 16 polegadas, a onze milhas, e em seguida vieram tomar posição a cerca de metade dessa distância. Um obus de 16 polegadas pesa 950 quilos, e viaja oitocentos e tantos metros por segundo... Cada vez que um desses bólides o atingia, o Bismarck balouçava e estremecia violentamente. Mas durante algum tempo ainda foi ripostando, tiro por tiro, salva por salva...

O desastre se deu quando um obus estourou com a estação central de comando: como máquina de guerra coordenada, o Bismarck estava acabado. E certo que a tripulação ainda se batia nas diversas torres de ação individual, mas o fogo era já desordenado.

O Rodney e o George V chegaram-se ainda mais, a duas milhas de distância. Todos os obuses atingiam o alvo com precisão matemática. O mastro grande do Bismarck, esburacado, pendia como uma árvore ferida, de envolta numa confusão de trepadeiras enredadas, até que outro obus o cortou cerce, e o fez precipitar-se com terrífico fragor no tombadilho. As chamas romperam de uma chaminé. Uma das torres estava inclinada, com os imensos canhões inutilmente arreganhados para o céu... Nunca um vaso de guerra apanhara tanta pancada sem se afundar!

Foi assim que o moral dos combatentes se desintegrou completamente: a tripulação de uma das torres se amotinou, e desertou o posto. Após um momento de hesitação, o oficial fugiu também.

Em outra torre, tendo os homens deixado de obedecer, o oficial abateu-os a tiro.

Pouco depois o barco começava a adernar lentamente para bombordo, e a água a jorrar para dentro, através dos rombos abertos pelos obuses, e das chapas despedaçadas. A água inundou os convéses um atrás do outro, borbotando e rugindo através do labirinto das câmaras e dos corredores. Alguns compartimentos estavam trancados, e os homens morriam afogados como ratos, quando a água inexorável atingia os tetos... Outros procuravam romper caminho até lá em cima, debatendo-se para alcançar as escadas.

Mas o tombadilho virara um inferno: os tiros abriam buracos como cavernas, as explosões arrancavam as roupas do corpo dos homens, a gritaria dos feridos era de ensurdecer, e por todos os lados jaziam os mortos. A horda, enlouquecida de terror, tentou voltar para baixo, fugindo ao tombadilho e à morte: mas as escadas estavam atulhadas de homens que se batiam ferozmente por abrir caminho para a vida e para a luz, fugindo às águas que subiam sempre lá do fundo, espumando e rugindo. Com as cabeças perdidas, em luta de morte, rolavam pelas escadas como serpentes enfurecidas.
 
Nessa altura o Bismarck estava quasi completamente de quilha para o ar. Muitos homens se debatiam já nas ondas, outros escorregavam e gatinhavam freneticamente no bojo negro e viscoso do casco. Vagarosamente, a proa se empinou para o céu,—e, de popa para baixo, o Bismarck desapareceu no oceano.

Os navios ingleses se aproximaram para recolher os náufragos. Cerca de cem alemães conseguiram agarrar-se às cordas que os ingleses lhes atiravam, e foram içados para bordo. Mas correu que os submarinos alemães se estavam aproximando, e os ingleses, para não serem apanhados a pairar no mar, puseram-se em marcha, abandonando centenas de alemães a lutar sem esperança com as vagas do Atlântico.

Os homens que foram salvos pareciam desvairados, e vinham com os olhos encovados como se tivessem sofrido meses de torturas. Mais tarde, depois de tratados e metidos na cama, depois de terem repousado e recebido tônicos, ainda se mostravam atoleimados. Mesmo entre si, mal podiam falar. Houve um observador que, ao vê-los, os comparou aos zumbis, que erram pelo mundo sem alma... O que sofreram aqueles homens era mais do que um simples choque físico: a fé em que os educaram, em que se inspiraram suas vidas, estava despedaçada, e morta a crença na sua invencibilidade!






Texto extraído da revista Seleções Reader's Digest de abril de 1942



Obs: Hood - 1412 mortos
  Bismarck - 2089 mortos

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