domingo, 8 de novembro de 2009

ANTIS- a História de um Cão - Condensação do livro de ANTHONY RICHARDSON

* "One Man and His Dog", Copyright, 1960, do autor, editado por E P Duíton & Co. Inc., Nova York 10, N.Y., E.V.A.



Antis era um cão de guerra, no sentido mais literal e militar. Nascido em um campo de batalha na Segunda Guerra Mundial, recebeu o batismo de fogo na primeira semana de nascido e depois participou de mais combates do que muitos soldados veteranos. Salvou vidas humanas e foi o primeiro cachorro não inglês a receber a Medalha Dickin—a Victoria Cross do mundo animal. Antis foi um grande herói, mas para seu dono tcheco foi simplesmente um amigo—talvez um amigo mais leal e mais constante por ser um cão.


O ESTRONDO ensurdecedor foi seguido quase imediatamente por um longo rugido de coisa triturada. O estrépito foi terrível e o filhote de pastor-alemão, reagindo freneticamente, procurou levantar-se. Caiu inerme, soltando um trêmulo ganido. Estava demasiado fraco pela fome para manter-se de pé. A casa de fazenda onde ele morava era na terra de ninguém, entre as linhas Maginot e Siegfried. Dias antes—a data era 12 de fevereiro de 1940—pesados bombardeios de artilharia derrubaram as paredes, mataram sua mãe e seus irmãos recém-nascidos e puseram em fuga os donos da casa. O cãozinho ficara abandonado e só na cozinha em ruínas, encolhendo-se de medo toda a vez que recomeçava o bombardeio.


Aquele último estrondo, porém, não fora de projetil e sim da queda de um pequeno avião de reconhecimento, seguida da explosão do tanque de gasolina e do rugido das chamas. Poucos minutos mais tarde dois aviadores do Primeiro Grupo de Reconhecimento e Bombardeio Francês, ambos felizes por estarem vivos, perceberam as ruínas da casa de fazenda. O piloto, Pierre Duval, tinha uma bala na coxa; por isso foi Jan Bozdech, observador-metralhador, quem correu para investigar.
Ao transpor a desmantelada porta da cozinha, revólver em punho, Jan ouviu uma respiração rápida e ofegante.
—Mãos ao alto e venha para fora —ordenou, apontando sua arma para um suspeito montão de entulho.
Não houve resposta. Com o coração em sobressalto, o aviador resolveu entrar e descobrir o que havia atrás dos destroços.
—Com mil demônios!—exclamou, começando a rir.
Pierre aproximou-se, coxeando e deixando um rastro de sangue, mas ainda assim curioso.

—Que é que há ?—perguntou.
—Capturei um alemão—respondeu Jan, abaixando-se para apanhar o fulvo cãozinho.
Embora o pequeno pastor-alemão estivesse tremendo de medo, arreganhou os dentes de leite, rosnou com arrogância e chegou mesmo a mordiscar a mão do aviador.
—Calma—disse Jan, acariciando a cabeça do animal.—Você escapou agora mesmo de ser fuzilado. Quase lhe dei um tiro, sabe ?
Sob a carícia tranquilizante, o cãozinho se aninhou confiante nos braços de Jan.
Uma cerração baixa tinha até então escondido os dois aviadores da vista dos alemães. Essa proteção, entretanto, poderia desaparecer de um momento para outro, e não seria prudente tentar atingir as linhas francesas antes do cair da noite. A solução era sentarem-se e esperar.

Pierre, enfraquecido, reclinou-se numa cadeira e cerrou os olhos. Jan desembrulhou sua ração de chocolate e ofereceu um pedaço ao cãozinho. Este farejou a gulodice, mas não comeu enquanto Jan não derreteu um pedaço sobre uma chama e lambuzou os dedos com ele. Depois de começar, o animalzinho lambeu com alegria e repetidamente os dedos do aviador. Em seguida aninhou-se em seus braços e dormiu contente.

Uma Espécie de Chantagem


COM UMA das mãos Jan abriu o mapa no chão e examinou-o. Indicava um bosque a cerca de quilometro e meio de distância. Se pudessem atingi-lo, estariam em território francês. As seis horas ele sacudiu Pierre:
—Já escureceu. É melhor irmos andando.
Durante uns instantes eles olharam o cãozinho, dormindo calmamente no chão. Não seria prudente levá-lo, pois, se ganisse uma única vez, poderia traí-los. Resolveram então deixar suas rações ao lado- de uma vasilha com água e, antes de partir, Jan colocou a porta atravessada na entrada para que o animal não pudesse segui-los.
Mal haviam iniciado a caminhada para o bosque, ouviram uma troca de tiros e passaram a avançar lentamente, de gatinhas. Antes de terem percorrido uns 30 metros, o clarão de um projetil de magnésio acendeu-se quase sobre suas cabeças, iluminando com profusão o terreno e fazendo os dois homens instintivamente se colarem ao solo. Quando o clarão se extinguiu, Jan ouviu o som temido—-o desesperado ganido de um cãozinho que se via abandonado.

Era necessário silenciar o animal. Jan procurou sua faca, fez sinal a Pierre para que permanecesse imóvel, rastejou de volta à casa. Ao aproximar-se, ouviu o cãozinho atirando-se contra a barreira que fechava a entrada da cozinha. Conseguira alcançar a parte superior do obstáculo com as patas dianteiras e com as traseiras lutava desesperadamente para subir. Depois escorregava de novo para o chão.

Jan olhou por cima da barricada nos olhos suplicantes do cãozinho. Voltou o rosto. Era inaudito matar um cão com uma faca. Procurou no chão um pedaço de pau pesado para atordoá-lo, mas não o encontrou. Pensando em Pierre, ferido e sozinho na escuridão, Jan ficou aterrorizado. Tinha de andar depressa. Foi então que ouviu um gemido angustioso no outro lado da porta.
—Inferno!—resmungou ele, vencida completamente a sua decisão.
Às apalpadelas, na escuridão, encontrou o animal e o escondeu sob o blusão de voo.

Mascote dos Exilados Tchecos


Os DOIS homens gastaram quase sete horas angustiosas para alcançar a orla do bosque protetor. Pierre, enfraquecido pelo ferimento, estava no limite de suas forças, e até Jan fraquejava, completamente esgotado*
Durante toda a penosa caminhada o cãozinho não fizera o mínimo ruído. E então começou a ganir incontrolàvelmente.
Jan despertou de sua modorra.
—Fique quieto—sussurrou.
—Escute—disse Pierre.—Ele está ouvindo alguma coisa que nós não percebemos.
De súbito, como um tiro de pistola no silêncio da escuridão, um galho estalou e meia dúzia de vultos emergiram das árvores. Jan pôs-se em pé de um salto, sustentando o animal com uma das mãos e, com a outra, sacando o revólver. E então um raio de luar iluminou os uniformes da infantaria francesa. Estavam salvos!
Dois dos soldados, utilizando seus fuzis e um capote, improvisaram uma padiola e transportaram Pierre para a casamata mais próxima. No dia seguinte o ferido foi evacuado para o hospital, enquanto Jan, carregando carinhosamente o cãozinho, regressava à sede de seu esquadrão em St. Dizier.
Aí ele fazia parte de um grupo muito íntimo de sete exilados tche-cos. Todos eles haviam pertencido à força aérea antes da invasão de seu país por Hitler. Depois haviam fugido através da Polónia, ingressando na Legião Estrangeira na África e sendo posteriormente destacados para a Força Aérea Francesa. Todos tinham o mesmo espírito combativo, a mesma determinação de lutar contra os alemães a todo o custo.
Talvez fosse a saudade do lar,que os fez se afeiçoarem tanto ao cãozinho de Jan. Gostaram dele desde o primeiro momento e adotaram-no como mascote. Após alguma discussão resolveram chamá-lo de "Antis", tirando o nome das iniciais A.N.T. dos bombardeiros que haviam tripulado na Tchecoslováquia. Segundo o comentário de Joshka, um jovem da Morávia, esguio, de cabelos crespos:
—O nome do nosso cachorro deve ser raro, curto e tipicamente pessoal.
—Meu cachorro—corrigiu Jan, mas aceitou o nome,
Antis passou a dormir todas as noites na casamata, aos pés de Jan, A medida que as semanas passavam, o animalzinho crescia e se tornava mais esperto. Carinhosamente instruído e sendo inteligente, aprendeu a estender a pata a cada um de seus amigos. Ninguém poderia imaginar até que ponto ele compreendia esse símbolo de unidade, mas em breve seria posta integralmente à prova a. lealdade do cão. Antis iria passar muita coisa com aqueles homens.

Todos por um e um por Todos


A FRANÇA experimentou naquela primavera o amargor da derrota, quando as divisões blindadas de Hitler infletiram para o Sul com arrasadora velocidade. O esquadrão foi fugindo de um aeródromo ameaçado para outro até que Paris caiu. Veio então a reunião final.
—Senhores—anunciou solenemente o ajudante—nossa unidade foi dissolvida. Daqui em diante é cada um por si. Deus os acompanhe!
Os sete tchecos se reuniram em conselho.
—Vimos aqui lutar, não para fugir—disse Vlasta, o mais graduado do grupo.—Sugiro que fiquemos juntos e tentemos alcançar a Inglaterra para continuar lutando.
Todos concordaram. Dentro de 15 minutos os sete haviam amontoado toda a bagagem em uma velha carreta e, colocando Antis no topo da carga, juntaram-se à corrente de refugiados que se dirigia para o Sul. E, graças à sua determinação e à boa sorte, conseguiram atingir, cerca de duas semanas mais tarde, o pequeno porto mediterrâneo de Sete. Daí seguiram para a base naval inglesa de Gibraltar.
Verificadas as credenciais dos aviadores tchecos, os britânicos designaram todos os sete para a Real Força Aérea, determinando que embarcassem no pesqueiro Northman, que se dirigia para Liverpool. Finalmente eles estavam a caminho da Inglaterra!
Surgiu, entretanto, um pequeno problema: não eram permitidos cães a bordo. Os regulamentos britânicos proibiam-no taxativamente. O grupo de tchecos, porém, introduziu Antis clandestinamente, escada acima, embrulhado numa capa de chuva, escondendo-o na carvoaria. Jan permaneceu lealmente com o cachorro, estendendo um cobertor sobre o carvão.
No segundo dia de viagem ocorreu um defeito nas máquinas do Northman e todos os passageiros receberam ordem para passar para outro navio. Imedia-ttamente os tchecos repartiram a bagagem de Jan entre eles, de modo que sobrasse lugar para esconder Antis no saco de campanha de seu dono. Tudo correu bem até que eles chegaram ao tombadilho do-novo barco, onde Jan parou um instante para mudar a posição do saco.
—Faça o favor de continua r— recomendou severamente o intérprete.
Ao som de uma voz estranha o saco se agitou perceptivelmente. Nesse momento, Jan deixou escapar a corda que prendia a boca do saco e logo a cabeça de Antis apareceu pela abertura, diante dos olhos atónitos do oficial de quarto inglês. Os sete tchecos permaneceram como paralisados.
—Olá—disse o oficial com um sorriso—um clandestino! Tirem o pobrezinho daí. Ele acabará sufocado.
O inglês afrouxou a corda e Antis saltou para o imaculado tombadilho, sacudindo uma nuvem de pó de carvão em torno de si, como um halo satânico.


—Levem-no para baixo e dêem-lhe um banho antes que o capitão veja a sujeira que vocês fizeram no seu tombadilho—disse o oficial, voltando-se para atender outro grupo de passageiros transferidos.
Quando eles se aglomeraram a bordo, Jan foi impelido como num sonho, com Antis trotando aos seus calcanhares.
O resto da viagem decorreu em verdadeiro luxo—beliches de verdade, roupa de cama limpa, pias nos camarotes. Devolvido à liberdade, Antis readquiriu sua vitalidade e seu pêlo lustroso.
Entretanto, quando se aproximavam de Liverpool os aviadores receberam terríveis notícias. Todos os animais deveriam permanecer em quarentena no porto durante seis meses; aqueles cujos donos não pudessem pagar o aluguel do canil seriam sacrificados. Todo o dinheiro de que os aviadores dispunham mal daria para manter Antis durante três semanas.
Mas homens de expediente, já haviam enfrentado problemas mais sérios do que aquele. E os tchecos nessa altura já eram conspiradores^ experimentados.
As duas horas da tarde, na véspera do desembarque, todos os animais foram reunidos. Minutos depois Jan e um intérprete foram chamados à presença do capitão.
—O senhor não entregou o seu cão—disse severamente o comandante do navio.—Onde está ele ?
—Não sei.
A resposta, no momento, era tecnicamente verdadeira.
—O senhor sabe que isso constitui uma transgressão grave ?
—Eu não fiz nada, capitão—replicou Jan.—Não vi mais o cão.
O navio foi vasculhado de alto abaixo, em todos os cantos, nos camarotes, nos depósitos, nos porões; esvaziaram-se armários e caixotes. Nada de Antis. Às cinco horas cessou a busca inútil.
Quando o navio encostou em Liverpool, na noite seguinte, Jane Vlasta conseguiram ser destacados para supervisionar o desembarque da bagagem do destacamento. Depois que o último volume foi empilhado na rede da lingada, eles colocaram cuidadosamente em cima um grande saco de campanha, de forma suspeita, marcado "Jan Bozdech".
Dentro de uma hora a bagagem estava arrumada na plataforma da Estação Central de Liverpool, com o saco de Jan ainda no topo da pilha. Três minutos antes da partida do trem um pelotão de soldados chegou, fez alto e descansou armas. A coronha de um fuzil bateu no volume marcado Boádech, e logo se fez ouvir um veemente latido de protesto.
A polícia militar convergiu imediatamente para a pilha. O destacamento tcheco, sempre pronto a cooperar, intrometeu-se na busca, desmanchando a pilha e passando o saco de Jan de mão em mão, a coberto da confusão geral, até que a área ficou livre de qualquer suspeita. Uns latidos sub-reptícios, com imperceptível acento tcheco contribuíram para despistar os perseguidores. Quando o trem chegou, a polícia desistiu da busca.
Um quarto de hora mais tarde os oito camaradas estavam a caminho de seu primeiro estacionamento no Reino Unido. Era o dia 12 de julho de 1940.

Antis se Encarrega dos Alarmas


PARA HOMENS que já realizaram missões de combate é penoso voltar a uma escola de aviação. Em Cos-ford, e depois na base da RAF em Duxford, os tchecos chegaram quase a bendizer os esporádicos ataques aéreos alemães, que interrompiam a rotina monótona das aulas.
Jan dedicava suas horas de folga a treinar Antis. Ele não tinha conhecimentos especializados sobre o assunto, e limitava-se a tratar o animal como um ser humano. Antis respondia com a mais devotada e inteligente obediência. Não tardou a compreender todas as ordens comuns; aprendeu a fechar portas quando mandado e, infalivelmente, entregava as luvas a Jan sempre que ele se aprontava para sair.
Enquanto Jan estava em aula, Antis ficava com os armeiros. O anima! adquiriu uma habilidade incomum para detectar aviões inimigos e sempre se manifestava uns minutos antes do alarma dos aparelhos de alta frequência. Todo o sistema de alerta funcionava apenas quando os aviões voavam em altura elevada; se os alemães chegavam em voo baixo, ele era de pouca utilidade. Antis, porém —diziam os armeiros—invariavelmente os alertava a tempo de correrem para os abrigos.
Jan não acreditava muito nessa história, pois sempre se encontrava em aula no início das incursões inimigas. Certa noite, entretanto, quando estudava em seu beliche, viu Antis despertar subitamente e correr à janela, com as orelhas em pé. Não se ouvia ruído algum a não ser o tamborilar da chuva, mas o cão começou a rosnar, com o pêlo eriçado. Depois dirigiu-se para a porta e lá permaneceu, imóvel.
—Não seja tolo—disse Jan.—Não pode haver nada com um tempo assim. Vá deitar.
Antis continuou ganindo. Depois, vendo que Jan não tinha intenção de sair do seu beliche, baixou as orelhas em sinal de reprovação e deitou-se. Meia hora mais tarde Joshka entrou, de volta de seu quarto de serviço na Sala de Operações.
—Que tempo danado!—-disse.—
Não há dinheiro que me fizesse voar esta noite. Aposto que o alemão que andou por aqui estava perdido.
—Esta noite?—perguntou Jan.— Não ouvi nada.
—Há cerca de meia hora. Muito alto. Nós o identificamos precisamente a 25 quilómetros, quando ele fez meia volta e foi-se embora.
—Com mil demónios!—exclamou Jan, e à guisa de desculpa estendeu a mão e afagou as orelhas de Antis.
O astuto animal tivera razão.
Naquele outono, quando os tche-cos foram transferidos para o aeródromo de Speke, a oito quilómetros de Liverpool, a peculiar habilidade de Antis assumiu particular importância. Liverpool era um grande alvo, sujeito a bombardeios maciços. Com os avisos do cão, incrivelmente precisos, os homens acostumaram-se a depender dele para alertá-los sempre que a área circunvizinha era ameaçada.

Salvamentos nos Escombros

UMA NOITE, quando Jan e Vlasta regressavam de uma folga na cidade, o cão começou a ganir, precisamente no momento em que eles se aproximavam de uma maciça arcada sob o viaduto de Speke. Mais além, em Liverpool, o céu era cortado pelos fachos dos holofotes, e o horizonte piscava com explosões de bombas; entretanto, as sirenas ainda não haviam soado.
—Eles devem estar rumando para cá—disse Jan, quando o ganir do animal se tornou mais insistente.—
Vamos! É melhor procurar o abrigo da arcada.
Quase no mesmo instante eles ouviram os motores se aproximando. A primeira bomba rebentou no momento em que eles saltavam para a proteção do viaduto.
As explosões se sucediam; uma viga caiu, fendendo o pavimento de granito e arrancando centelhas; das duas extremidades do arco tombavam pedaços de concreto. Ao lado do viaduto, onde existira uma fileira de casas bonitas, havia apenas entulho. Seguiu-se um longo silêncio; depois, subitamente, alguém começou a gritar.
—Vamos—gritou Vlasta.—Temos de tirá-los de lá.
E correram pela rua. Um homem, com o sangue escorrendo do braço dilacerado, esbarrou neles, gritando:
—Salvem-na, por favor! Ela está ali embaixo. Estávamos tomando uma chávena de chá . ..
Os soluços lhe embargaram a voz e ele se sentou no meio-fio, segurando a manga ensanguentada do casaco e soluçando.
Um operário da turma de socorro pôs uma picareta nas mãos de Jan. Antis, que permanecia junto aos restos quebrados de um armário de cozinha, as patas no meio de pedaços de louça, começou a latir. Jan foi examinar o que era e viu cinco dedos movendo-se no meio dos escombros. Começou a cavar rapidamente e desenterrou uma mulher atordoada e ensanguentada.
—Excelente cão—disse o operario.—Traga-o aqui, por favor. É provável que haja outros. Santo Deus, que confusão!
Jan seguiu o homem até uma pilha de reboco fumegante e móveis despedaçados.
—Busca!—ordenou.
A meia altura dos escombros Antis se deteve, farejando. Um oficial da RAF começou a cavar onde o cão indicara, e dentro de poucos minutos conseguiu retirar um homem que fora totalmente soterrado e estava ainda inconsciente.
—Para este trabalho não há nada como um cão ensinado—disse o operário da turma de salvamento.
—Ele não é ensinado—-disse Vlas-ta com impaciência.—É apenas um cão muito bom.
O trabalho continuou até às duas horas da manhã. Quando o chefe da turma de salvamento deu finalmente o trabalho por encerrado, ô pêlo do cão estava fosco, e tinha as patas feridas e ensanguentadas de tanto escavar destroços pontiagudos.
—Nada mais podemos fazer aqui —disse Vlasta.—Vamos embora, e cuidar dos ferimentos de Antis.
Mas o animal forçava novamente a correia, puxando Jan na direção de uma parede de tijolo desequilibrada.
—Por hoje chega, moço—disse Jan.—Já fizemos bastante . . .
Um estrondo cortou-lhe a frase. A parede ruíra. Horrorizado, ele sentiu a correia escapar-lhe das mãos.
—Antis!—gritou em meio à confusão.—Antis!

Vlasta dirigiu a luz de sua lanterna para o lugar onde estivera a parede, transformada então num monte de tijolos e madeiramento, da altura de um homem. Jan se pôs de joelhos removendo pedaços de reboco e jogando-os em todas as dire-ções. Ainda uma vez gritou quase histèricamente: —Antis!
De um ponto qualquer atrás dos escombros ouviu-se um latido em resposta. Os homens penetraram rápidos em um pequeno quarto, onde o entulho alcançava a altura dos joelhos. Estendida de costas sob uma camada de caliça havia uma mulher morta, mas em um canto afastado Antis montava guarda a um berço; dentro dele uma criança vivia ainda. O chefe da turma de salvamento estava visivelmente comovido.
—Sabe, meu amigo—disse ele, dirigindo-se a Antis—sem você nós não poderíamos ter feito este trabalho.

A Longa Vigília


No COMEÇO de janeiro de 1941 Jan, Stetka e Josef tinham completado o curso na escola de aviação e, incluídos na Esquadrilha 311 (Esquadrilha Tcheca do Comando de Bombardeio), foram sediados em East Wretham para cumprirem missões de combate. A transferência os reuniu a outros compatriotas que haviam recebido instrução alhures, e propiciou-lhes a desejada oportunidade de enfrentar o inimigo. Por outro lado, isso significava que Antis, pela primeira vez, tinha de acostumar-se com as ausências de Jan, pois as missões noturnas de bombardeio, que a esquadrilha em breve estaria realizando, muitas vezes se prolongavam até de madrugada.
Durante semanas Antis mostrou-se mal-humorado e deprimido. Por fim, estabeleceu relações com a turma de manutenção encarregada do Cecília, o avião de seu dono, e pareceu conformar-se com as ausências. O cão acompanhava Jan no caminho para o avião, via-o embarcar no grande Wellington, depois voltava para a barraca de manutenção, situada na orla do campo, e aí se instalava para passar a noite, imóvel, enquanto os aviões estavam fora,
Um pouco antes do alvorecer ele erguia de repente as orelhas e a turma de manutenção ficava então sabendo que a esquadrilha estava regressando. Tão logo discernia o ruído particular dos motores do Cecília, Antis começava a saltar nervosamente, em pé sobre as patas traseiras—sua "dança de guerra", como diziam os mecânicos—e em seguida corria para apreciar a chegada dos aviões e receber Jan. O ritual nunca variava.
Uma noite de junho, porém, depois de Jan haver cumprido mais de dez missões, os mecânicos notaram uma brusca alteração na rotina. Um pouco depois da meia-noite Antis se mostrou anormalmente inquieto.
—Que há com ele?—perguntou alguém.—Estamos esperando visitas ?
—Não—replicou Adamek, chefe da turma—os alemães não virão hoje.
E voltando-se para o cão:
—Antis, venha aqui para um cafuné e fique sossegado.
Mas o cachorro não lhe deu atenção e foi postar-se na entrada da barraca. De repente, levantou o focinho e soltou um uivo agudo e longo. Depois deitou-se do lado de fora, inquieto, com a cabeça erguida, como se preparado para uma longa vigília.
À uma e meia, o primeiro Wellington que retornava piscou identificando-se e rodou pela pista. A intervalos regulares os outros aviões foram chegando, até que faltou apenas o Cecília. Passaram-se mais duas horas e não houve sinal do avião de Jan.
—Não adianta continuar esperando—disse finalmente um dos mecânicos.—A estas horas a gasolina dele já acabou.
—Vamos dar-lhe mais 15 minutos —sugeriu Adamek.
Quando o prazo se esgotou sem que o avião aparecesse, a turma resolveu, embora com relutância, suspender o serviço e ir para o rancho.
—Vamos, Antis—convidou Adamek.
O cão ficou onde estava.
Nesse momento entrou na barraca o estimado comandante da esquadrilha, Ten. Josef Ocelka. Velho admirador de Antis, ele tinha prometido a Jan que tomaria conta do animal se seu amigo deixasse de regressar de uma missão.
—Alguma notícia do Cecília, Tenente?—perguntou um dos mecânicos, enquanto Adamek insistia com Antis.
—Ainda não. Traga-o à força, Cabo ^Adamek.
—É inútil, Tenente. Ele não se afastará daqui enquanto Jan não regressar. Conheço bem este animal.
—Eu também—replicou Ocelka. —Vamos embora. Talvez ele mude de ideia quando sentir fome.
Depois do desjejum Adamek voltou à barraca com um prato de fígado. Antis continuou indiferente, como se mostrava indiferente à chuva que começara a cair. Convencido de que não haveria jeito de demover o cão, Adamek cobriu-o com uma lona e deixou-o ficar.
Já no fim da tarde a Sala de Operações foi informada de que o Cecília, atingido pelo fogo antiaéreo na altura da costa holandesa, conseguira voar até ao aeroporto de Coltishall, com apenas uma baixa: o metralhador Jan Bozdech estava no Hospital Norwich, curando-se de um ferimento superficial na cabeça. Os tchecos se regozijaram com essa notícia, mas não havia meio de transmiti-la ao cão.
Durante toda a noite Antis permaneceu em seu posto. Na madrugada seguinte, à hora em que o esquadrão costumava regressar de seus reides, o cão ergueu-se e deu uns passos. Uma hora depois do amanhecer, vendo que nenhum avião aparecia, começou a uivar desconsoladamente.
—Antis vai morrer de fome—disse Ocelka—e, enquanto isso, vai deixar-nos malucos. Temos de encontrar uma solução.
Foi o Padre Poucnly, capelão da base, quem resolveu o problema. Menos sujeito que qualquer outro oficial aos canais ordinários do comando, o padre foi direto ao ponto nevrálgico telefonando aos médicos que trabalhavam em Norwich. Uma vez que o Sargento Bozdech não estava muito ferido—sugeriu ele habilmente, ao expor a situação—não seria possível lhe darem permissão para uma pequena viagem de ambulância e para alojar o cão no hospital durante uns poucos dias? (Seguiu-se uma prolongada conferência médica.) Sim ? Seria possível ? Muito obrigado.
E assim foi feito. A ambulância chegou naquela tarde e os dois inseparáveis amigos viaj aram para o Hospital Norwich, onde amboS foram escandalosamente mimados pelas enfermeiras, até que Jan teve alta.

"O que os Olhos Não Vêem..."


ANTIS já havia assistido tantas vezes—mais de 30—à rotina do Cecília, que toda a tripulação conhecia detalhadamente os hábitos do animal. Uma noite, porém, pouco depois da chamada geral, o cão desapareceu. Embora não houvesse sinal dele em parte alguma e não fosse provável que ele alterasse sua costumeira norma de conduta, ninguém ficou particularmente apreensivo. Antis já demonstrara muitas vezes que sabia cuidar de si.
Quando o avião nivelou a 2.400 m de altura, Jan lançou um olhar inquieto na direção do campo de Wretham, àquela hora invisível na escuridão da paisagem. Depois, tratou de afastar o cão de seus pensamentos e concentrar-se na verificação de suas armas.
—Navegador para o operador do sem-fio—avisou subitamente o sistema de intercomunicação.—Você está-me ouvindo?
Absorvido em suas funções, Jan mal ouviu a resposta. Entretanto, as palavras seguintes do navegador despertaram toda a sua atenção.
—Estou ficando doido, ou você também está vendo o que eu vejo? —perguntou.
Seguiu-se uma série de exclamações e blasfémias. Depois:
—-Ele deve ter entrado no depósito de emergência pelo tubo que serve para lançar os artifícios ilumi-nativos. Alguém esqueceu de fazer a devida verificação. Jan, abra a portinhola de sua torre. Temos um clandestino a bordo.
Jan compreendeu logo o que havia acontecido e abriu a passagem. Displicentemente, como se fizesse aquilo todos os dias, Antis rastejou para dentro da torre e acomodou-se aos pés de seu amigo.
—Bandido!—exclamou Jan.—Devíamos largá-lo junto com as bombas.
Era impossível tomar qualquer providência. O Wellington continuava roncando, e Antis, docemente embalado, pôs-se a dormir.
Quando chegaram sobre a região do alvo, um denso fogo antiaéreo sacudiu a aeronave, mas o cão, ven do que Jan não se alterava, continuou calmo. Este, ao contrário, achou-se no dever de demonstrar sinais de encorajamento, a despeito da intensidade da barragem; desse modo cada um dava ânimo ao outro. Após alguns minutos, o perigo passou, e eles regressaram' à base, incólumes.
Tinham acabado de desembarcar quando chegou Ocelka. Visto que o regulamento do Ministério do Ar proibia conduzir animais nos aviões, a tripulação preparou-se para receber uma reprimenda enérgica. A semelhança de muitos oficiais camaradas, Ocelka sabia ser contundente quando a ocasião o exigia.
—Como se arranjaram?—perguntou friamente, olhando para Antis de soslaio.
O piloto, Jo Capka, fez um resumo da viagem, mencionando o pesado fogo que haviam encontrado. A tripulação agitou-se nervosamente quando o relato chegou ao fim.
—Fogo cerrado, hein ? Que é que você acha?—perguntou Ocelka fitando Antis.—Você não acha que estes pobres rapazes precisam de alguém para animá-los ?
Jan não pôde mais suportar.
—Posso explicar, Tenente—começou ele, mas Ocelka o interrompeu.
—O que os olhos não vêem o coração não sente. Já tenho aborrecimentos bastantes com os animais de duas patas. Vamos para a Sala de Operações para fazer os relatórios.
A partir de então Antis foi incluído como membro permanente da tripulação do Cecília. Sua conduta serena sob o fogo era tanto mais bem recebida quanto os homens estavam quase no fim do ciclo normal de serviço em combate—um período em que geralmente aumenta a tensão de todas as tripulações, que sabiam que mais de um aparelho fora derrubado em sua última missão. Ignorante dessa causa de preocupações, Antis corria para o avião como se cada missão fosse uma viagem de recreio, e inevitavelmente algo de seu élan se comunicava à tripulação.
O cão começou a acumular um número respeitável de missões de combate, registrando mesmo dois ferimentos no cumprimento do dever. O primeiro correu sobre Kiel, quando um fragmento de shrapnel lhe riscou o focinho e lhe cortou a orelha esquerda, que ficou caída para sempre desde então. O segundo pôs fim à sua carreira aviatória.
Durante um ataque contra Ha-nover, no momento em que o Cecília, tendo largado suas bombas, fazia a curva para regressar à base, uma granada explodiu bem embaixo do avião, crivando a fuselagem de estilhaços. Os motores nada sofreram e ninguém acusou ferimentos; todavia, ao alcançar East Wretham, o trem de pouso não arriou e eles tiveram de aterrar de barriga. Somente quando procuravam safar-se do avião acidentado foi que Jan descobriu que Antis tinha um ferimento de oito centímetros no peito, provocado por shrapnel.
Jan levou imediatamente o animal para a enfermaria da base, onde ele recebeu uns pontos e foi convenientemente enfaixado. Daí por diante Antis ficou em terra, afastado dos combates. Embora o animal se ressentisse das restrições, estas eram de certo modo suportáveis, uma vez que ele não sabia que Jan continuava voando. Enquanto o Cecília sofria reparos, sua tripulação foi transferida para outro avião, e, como o ruído dos motores deste não lhe era familiar, Antis simplesmente não lhe dava atenção.
Pouco tempo depois Jan completou seu ciclo de 41 missões (em sete das quais Antis tomara parte) e foi dispensado do serviço de combate. Nos restantes dois anos de guerra ele se ocupou primeiro como instrutor, depois em voos de patrulha anti-submarina. Antis desfrutava as horas que ambos passavam juntos e, quando Jan foi servir na Escócia, chegou mesmo a ser premiado num concurso de cães. Também certa vez desapareceu durante cinco dias, com uma cadela selvagem, nas serras da Escócia, mas depois demonstrou pouco interesse pelas res-ponsabilidades de pai. Os filhos foram abandonados ao próprio destino em companhia da mãe.

A Nuvem Negra


Os PRIMEIROS anos de paz foram venturosamente felizes para Jan. Ao retornar ao seu país triunfalmente libertado, recebeu a patente de capitão da Força Aérea Tcheca e foi designado para servir no Ministério da Defesa Nacional em Praga. Tanto ele como Antis tornaram-se bern conhecidos do público, pois Jan escreveu três livros sobre o seu tempo na RAF. Quase todos os jornais da Tchecoslováquia publicaram histórias de suas aventuras de guerra em companhia do cão.
Quando Jan se casou com uma moça de cabelos dourados, chamada Tatiana, Antis se fez notado na cerimónia por se haver emaranhado no véu da noiva. (Mais tarde ele se penitenciou da falta com um infatigável devotamento a Tatiana.) Em 1947, quando nasceu Robert, filho de seus ídolos, a criança^ se tornou encargo especial do cão. A noite ele dormia junto do berço, atento ao instante em que o menino acordava ou chorava. Antis então se levantava, caminhava mansamente até à cama do casal e encostava o focinho frio no ombro nu de Tatiana. Se isso não bastava para acordá-la, puxava-lhe as cobertas.
Foi um período maravilhoso para todos eles, mas não durou muito.
A 7 de março de 1948 Jan Ma-saryk, Ministro do Exterior e padrinho de Robert, telefonou do Palácio de Cernicky:
—Venha até aqui falar comigo, Jan. Tenho um presente para o seu filho.
Ao desligar o telefone, Jan sentiu que aquele convite poderia significar o desmoronamento de sua vida.
Ele se avistara com Masaryk no dia anterior; por que seu bom amigo lhe pedia para visitá-lo já no dia seguinte? Só poderia haver uma razão, e foi com receio que Jan se dirigiu para o Palácio de Cernicky.
—Você está entre os primeiros na lista negra dos comunistas—disse-lhe Masaryk.—O golpe pode vir a qualquer momento. Este aviso é estritamente para você: Nem Tatiana deve saber. Você precisa sair da Tchecoslováquia.
Era esse então o "presente" para o pequeno Robert! O" estratagema se fizera necessário, pois todos os telefones estavam sob escuta.
A Rússia Soviética, agindo através do Partido Comunista Tcheco, assenhpreava-se implacàvelmente do país. A medida que a guerra fria se intensificava, todos os que haviam tido ligações com o Ocidente se tornavam suspeitos. Jan percebera que seu apartamento se encontrava, havia meses, sob vigilância."• Seus'amigos souberam disso e não ousavam mais visitá-lo. O Ministério da De~ fesa estava repleto de agentes comunistas, muitos dos quais falavam russo. Há pouco tempo dois oficiais estrangeiros se haviam instalado no próprio apartamento de Jan, ostensivamente como estagiários, mas na realidade como espiões.
Três dias depois, a advertência de Masaryk foi sinistramente sublinhada pela morte do próprio Masaryk. Segundo a versão dos comunistas, ele "saltara" de uma janela do Ministério do Exterior.
Jan viu-se diante de um terrível dilema. Não poderia deixar sua mulher e seu filho enquanto houvesse qualquer possibilidade de viverem juntos. Por outro lado, se fosse aprisionado, sua família ficaria em situação muito pior do que se ele fugisse. A decisão era difícil. Jan hesitou durante semanas, até que, certa manhã, foi chamado pelo General Prachoska, do serviço de informações tcheco. A decisão agora passara para outras mãos.
—Sente-se, Bozdech—disse o General.—O Major Marek, meu assistente, gostaria de fazer-lhe umas perguntas.
—Foi o senhor quem escreveu isto?—começou Marek secamente, mostrando três livros e uma pasta com recortes de jornais.
Jan fez um gesto afirmativo com a cabeça.
—E que me diz dos programas e das peças radiofónicas, sempre fazendo a apologia dos ingleses?
—Eu servi na RAF—explicou Jan. —O que escrevi não passa de um relato do que vi naquele período, sem qualquer intenção política.
—Pelo contrário—interrompeu Marek.—Estes trabalhos constituem traição. Se o senhor deseja continuar escrevendo, deve escrever somente a_respeito da Força Aérea Vermelha. É uma ordem.
E depois de uma pausa:
—Há outro assunto. O senhor é sócio do Clube da Força Aérea ?
•—Sim, senhor.
A organização era comumente conhecida como "Clube Inglês", porque uma elevada percentagem de seus membros consistia em ex-oficiais da RAF.
—Sabemos que lá se discutem abertamente os mais- variados assuntos e desejamos estar informados a respeito. Falando claro, Capitão, queremos que o senhor preste atenção às conversas e, se necessário, provoque críticas ao regime atual. Comunique, depois, ao departamento os nomes de todos os sócios cujos pontos de vista indicarem que são inimigos do Estado.
Jan ficou escandalizado. Quis ensaiar um protesto; porém Marek mostrou-lhe um papel azul que se encontrava sobre a mesa:
—Temos aqui uma ordem de prisão datada de sexta-feira. O senhor tem três dias para decidir. Compreendeu bem ?

Movimento Subterrâneo Entra em Cena


NESSA NOITE Jan regressou a casa muito tarde. Depois que escureceu, deixou-se ficar pelas ruas, sozinho, procurando desesperadamente um meio de livrar-se da armadilha que lhe tinham preparado. Não seria um delator de seus amigos, disso não restava a menor dúvida. Se continuasse em seu posto e desafiasse os comunistas, só poderia esperar prisão e morte. A solução era evidente: fugir do país.
Com surpresa, acordou no dia seguinte com a mente desanuviada e os nervos calmos. Tendo sido dêsfechado o golpe há tanto temido, seus problemas se apresentavam incrivelmente simplificados.
Na hora do costume dirigiu-se para seu escritório. A uns 50 metros do Ministério da Defesa Nacional um transeunte deu-lhe um encontrão.
—Desculpe-me, Brazda—disse Jan, reconhecendo um antigo instrutor da Escola de Educação Física Sokol.
—Se você está em dificuldade— sussurrou Brazda—vá esta noite, às oito horas, ao Café Pavlova Kavar-na, em Strahove. A senha é: "Posso oferecer-lhe uma vodca?"
E pedindo desculpas pelo encontrão, Brazda continuou seu caminho. A máquina do movimento subterrâneo começara a funcionar.
Nessa noite, às oito horas, quando Jan apareceu no Café Pavlova Ka-varna, foi colhido suavemente pela engrenagem. Um homenzinho muito atencioso conduziu-o a um pequeno quarto no andar superior, onde Jan foi recebido por dois outros membros do movimento subterrâneo—um estudante e um senhor de idade, que sem dúvida fora soldado. Não houve apresentações. O ex-militar, que era chefe do grupo, não perdeu tempo com formalidades: ''- —Capitão Bozdech, sexta-feira é a data fixada para a sua prisão.
Jan ficou surpreendido com a exa-tidão do detalhe.
—Isso nos dá um dia para tirá-lo do país. Não é muito tempo. O senhor deve tomar uma decisão imediata, mas pesando bem os riscos, é claro. Se o senhor for apanhado tentando atravessar a fronteira, eles atirarão primeiro e farão as perguntas depois. Por isso, o senhor deve ir sozinho, e talvez possamos arranjar para que sua família vá posteriormente ao seu encontro por um caminho menos perigoso. Concorda?
Com o coração apertado, Jan acenou com a cabeça afirmativamente.
—Muito bem—continuou o chefe. —Aqui estão as instruções. Ouça atentamente.
Durante os cinco minutos seguintes os três agentes anónimos explicaram, nos mínimos detalhes, tudo o que Jan deveria fazer no outro dia. Depois, com um caloroso bon voyage, despediram-no.
Tatiana já dormia quando Jan voltou para casa nessa noite. Contemplando o rosto de sua esposa, suave e tranquilo, recordou as palavras de Masaryk: "Nem Tatiana deve saber." Masaryk tinha razão, é claro, ponderou Jan ao apagar a luz; tanto para a segurança dela como para a de Robert, era melhor ele partir sem dizer nada. Na manhã seguinte, porém, ao despedir-se dela, foi-lhe quase impossível manter a voz firme. O bater da porta atrás dele doeu-lhe como uma pancada no coração.
Ao entrar no escritório convocou seu auxiliar civil, Vesely. Durante a noite havia decidido que, embora fosse arriscado, precisava fazer uma alteração nos cuidadosos planos do movimento subterrâneo. Antis teria de acompanhá-lo. De outro modo —como Jan sabia por longa experiência—o cão se negaria teimosamente a comer, e a ideia de condená-lo à morte por inanição era-lhe insuportável.
—Vesely—disse Jan—tenho hora marcada para Antis no veterinário. Quer fazer-me o favor de passar no meu apartamento e trazer o animal ? Tome as minhas luvas; assim ele virá facilmente.
—Muito bem, senhor—replicou Vesely, feliz com a oportunidade para afastar-se do odiado escritório.
Duas horas depois, quando o involuntário cúmplice retornou com o cão, Jan compreendeu que a ocasião havia chegado. Começara a fuga. Ao transpor a porta, deteve-se um instante com naturalidade:
—Se alguém perguntar por mim, diga que estarei de volta depois do almoço.
Um dos espiões estalinistas levantou os olhos de sua papelada.
—Nós defenderemos o forte—disse sarcàsticamente.—Vá descansado.
—Obrigado—respondeu Jan.— Irei.

Antis em Perigo


DE ACORDO com as instruções recebidas, Jan tomou um bonde para Vaclasvska Namesti, depois entrou num movimentado mictório público. Quando fez a pergunta combinada, imediatamente o encarregado lhe entregou um pacote contendo uma muda de roupa. O fugitivo deveria viajar disfarçado de camponês,com uma mochila cheia de manteiga para vender.
O encarregado tomou conta de Antis enquanto Jan trocava de roupa em um dos reservados. Tudo fora previsto e os tamanhos eram exatos: do chapéu tosco às pesadas botinas. Havia também uma dúzia de pacotes de manteiga.
—O senhor está uma figura cómica—murmurou o homem quando Jan saiu do reservado, e lhe entregou uma nota de 500 coroas, mais o pacote (então contendo um belo uniforme da Força Aérea). Espero que o senhor consiga bom preço para a sua manteiga.
A Estação de Wilsonova ficava a uns 150 metros, mas Jan, com suas estranhas botinas, conseguiu meter-se no burburinho do trânsito, entrar na estação e comprar passagem sem que alguém lhe prestasse a menor atenção. O trem encostou, e Jan e Antis embarcaram. Seis minutos depois, ainda de acordo com as instruções, ambos saltaram na Estação de Smichov.
Isso era penas o início de um longo e complicado circuito que, por fim, levou Jan a certa fazenda, onde pernoitou. No dia seguinte um taciturno motorista o escondeu—sempre acompanhado de Antis—na traseira de um caminhão de transporte. Após demorado percurso, eles se detiveram junto a uma cabana isolada, no meio de mato denso.
—Esta é a casa de Anton—disse o motorista.—Vou deixá-lo aqui.
—Quem é Anton ?
—Um guarda-florestal que o guiará até à fronteira. Nada mais sei a respeito dele.
Quando o caminhão se afastou, um homem alto e muito queimado de sol saiu da cabana.
—Em que posso servi-lo?—perguntou com aspereza, os olhos fitos no cão.
Conforme fora recomendado, Jan lhe ofereceu um maço de determinada marca de cigarros. O homem permaneceu em silêncio alguns instantes, como se examinasse os cigarros. Afinal perguntou:
—Por que trouxe o cão?
—Aonde eu vou ele vai também.
O rosto de Anton se anuviou.
•—-Aonde você vai ele vai também —-repetiu.—Meu Deus, a gente vê cada uma! Você está pensando que este negócio é piquenique? Um latido dele e estaremos mortos. É preciso deixá-lo aqui.
—Nesse caso, prefiro voltar.
—E terá uma calorosa recepção. A esta hora já foi dado o alarma.
Jan reconheceu que o homem tinha razão, pois já era sexta-feira. Mas quanto a Antis, sua decisão continuava obstinadamente firme.
—Então quer mesmo arriscar a vida pelo cão^? Bem. Veremos o que diz Stefan. Ele irá conosco.
Chamou para o interior da cabana e, pouco depois, saía de lá um homem desempenado e barbudo. Anton explicou-lhe a situação. O outro não dizia nada olhando para Jan e Antis, como se procurasse recordar alguma coisa.
—Antis é ensinado—explicou Jan rapidamente.-—Não fará o menor ruído e poderá ajudar-nos.
—Antis—murmurou Stefan.—É isso. Li a respeito de vocês dois e me lembro dos retratos nos jornais. Por mim ele pode ir conosco.
Anten encolheu os ombros, depois sorriu para Jan:
—Você teria de fazer uma longa jornada para voltar a Praga—disse. —Mas eu gosto do seu espírito. Você terá êxito. Esperem um pouco.
Entrou na casa e logo voltou com dois revólveres.
—Espero que não tenhamos de usá-los, mas os postos de observação estão sempre mudando. Nunca se sabe—disse Anton.
Agachando-se, começou a riscar um mapa no chão com uma varinha.
—Aqui—disse apontando—fica o nosso primeiro obstáculo, uma floresta com uns três quilómetros de extensão. Está infestada de patrulhas. Sairemos da floresta neste ponto—explicou, assinalando o local— depois atravessaremos um pequeno vale, também permanentemente patrulhado. Logo a seguir se encontra a fronteira da Alemanha Ocidental e, um quilómetro adiante, a vila de Kesselholst. Uma vez lá, estaremos salvos.
—Partiremos imediatamente-— concluiu.—Quero alcançar a saída da floresta ainda com dia. Aí ficaremos escondidos e, depois do escurecer, daremos a última corrida através do vale.

Corrida com a Morte


UM CARRO levou-os até à orla da floresta, a uns 25 quilómetros de distância, e no princípio da tarde penetraram no espesso mato rasteiro. Inevitavelmente faziam bastante ruído, e para evitar serem surpreendidos pelas patrulhas volantes da fronteira Jan mandou Antis à frente, ordenando-lhe: "Busca!" Por duas vezes o cão se deteve rosnando baixo. No momento os homens nada perceberam, mas segundos depois ouviram o ruído leve e distante de galhos partidos e vozes abafadas. Eles se mantiveram ocultos na vegetação, imóveis, até que as patrulhas passaram; depois prosseguiram cautelosamente. Já caía a noite quando, por fim, alcançaram a saída da floresta.
Desse ponto observaram com atenção o vale que^se estendia entre eles e Kesselholst. A esquerda corria uma pequena estrada e, paralelamente a ela, um no turbulento. Não se viam patrulhas nem casamatas. Quando a claridade do crepúsculo se extinguiu e as luzes na vila começaram a acender-se, Anton sussurrou:
—Chegou a hora. Vamos!
Tinham percorrido uma pequena distância quando ouviram movimento nas proximidades. Jan lançou-se ao solo, junto com seus companheiros, no momento em que quatro vultos indistintos passavam furtivamente por eles, descendo a encosta.
De repente, a luz de dois holofotes furou a noite, varrendo o vale.
As pedras, os arbustos, os montículos, tudo parecia saltar de dentro da escuridão quando os fachos luminosos passavam, ora convergentes, ora mais afastados, depois saltando ambos sobre a presa. A cerca de 50 metros de Jan, quatro homens foram surpreendidos quando corriam freneticamente para trás das árvores. Antes que pudessem alcançá-las, as metralhadoras das casamatas abriram fogo e os quatro caíram.
No mesmo instante dois caminhões surgiram na estrada, cada um deles com quatro homens e um cão. Enquanto o pessoal descia para recolher os cadáveres, um dos cães começou a avançar na direção de Jan e de seus companheiros. A garganta de Antis emitiu um rosnado surdo, mas Jan apertou o focinho do animal com a mão.
Um dos guardas notou o afastamento do cão-polícia»
—Para cá!
O cão voltou para junto do guarda e os caminhões se afastaram.
—É sorte estarmos vivos—murmurou Anton.—O caminho que es-escolhi está bloqueado por um novo posto. Se aqueles quatro não tivessem vindo na frente, teríamos dado de cara com ele. Teremos de voltar e tomar outro caminho para atravessar o rio.
Os três homens voltaram cautelosamente para a floresta e depois gastaram uma -hora angustiosa abrindo caminho na escuridão através do pinheiral denso até chegarem à margem do rio. Apenas Jan entrou na água., segurando Antis pela coleira, a correnteza começou a puxá-lo.
—Agarremo-nos uns aos outros— recomendou Anton.
Jan cravou os dentes de Antis na aba de seu casaco, e os quatro, bem juntos, avançaram para o meio do rio, onde a correnteza era mais forte. Quando a água já lhe atingia a altura dos quadris, Jan escorregou numa pedra solta, desequilibrou-se e largou a mão de seu companheiro. Imediatamente foi carregado pela correnteza, arrastando Antis consigo, até que bateu numa pedra e conseguiu agarrar-se a ela. Ao recobrar o equilíbrio, verificou que fora levado para uma parte mais rasa, de onde pôde alcançar a outra margem.
Antis ainda estava com ele, mas não havia sinal de Anton nem de Stefan. Como tivesse receio de gritar, Jan ajoelhou-se junto ao cão e ordenou:
—Busca! Busca!
Durante alguns minutos só ouviu o marulhar do rio. Jan perguntou a si mesmo se não teria feito uma tolice mandando o cão em uma busca tão infrutífera, pois a correnteza podia arrastar um homem 50 metros em poucos instantes. De repente, sentiu uma batida no ombro e, quando levava a mão à arma, uma voz a seu lado começou a praguejar. Era Anton.
—Desculpe—disse Anton.—Vinha rastejando e bati com a cabeça em você. Graças a Deus que o cão está conosco. Sem a ajuda dele nunca nos teríamos encontrado. Você acha que ele pode achar Stefan ?
A uma ordem de Jan o cão desapareceu de novo. Demorou algum tempo, mas afinal regressou, conduzindo o encharcado e exausto Stefan.
—Fui carregado rio abaixo um bom pedaço, até um remanso. Foi então que Antis me descobriu. Acho que me salvou a vida.
Depois de alguns minutos de repouso eles continuaram, rumando para uma elevação situada a poucas centenas de metros da fronteira.
Densa cerração escondia comple-tamente a floresta e era impossível enxergar um palmo à frente. Antis corria de um homem para outro, como um cão pastor conduzindo o rebanho, guiando-os e mantendo-os em contacto uns com os outros. Quando chegaram ao topo da elevação, Anton achou que era inútil continuarem enquanto a cerração escondesse todos os pontos de referência. Os quatro instalaram-se para esperar o clarear do dia.
As primeiras luzes da alvorada, foram para trás de umas rochas e aí planejaram a corrida final até à fronteira. Jan colocou Antis de sentinela em cima das pedras.


Como Anton não tinha ideia de quantos postos ainda poderiam encontrar, decidiram atravessar o vale um de cada vez. O guia quebrou um galho em três pequenos pedaços, para sortear quem iria em primeiro lugar. No momento que estendia a mão, Antis rosnou e deu um salto. Ouviram o ruído de pé dras rolando, um grito sufocado e um rosnado selvagem.
Com o revólver na mão Jan correu para o outro lado da rocha. Antis estava sobre um soldado caído de costas, com o fuzil preso e inútil embaixo do corpo. Anton saltou sobre o guarda com a faca erguida.
—Não!—gritou Jan.
Anton hesitou.
—Jan tem razão—disse Stefan.— Seria assassínio.
—O miserável merece morrer— replicou Anton.
Entretanto, embora com relutância, afastou-se de cima do homem. Rapidamente eles amordaçaram o soldado e o amarraram a uma árvore; depois correram para o vale.
Ao alcançarem a orla do mato pararam bruscamente. O caminho através da campina estava bloqueado por uma guarita de cujo teto saíam fios telefónicos. Desanimados, os três homens ficaram escondidos na macega durante quase uma hora, observando a guarita. Não havia o menor sinal de vida.
—Experimente o cão—sussurrou Anton por fim, e Jan despachou Antis para sondar o que havia.
O animal correu até junto da porta fechada e aí parou, farejando; depois latiu. Não houve resposta.
—Acho que havia apenas um guarda—disse Stefan.—O que está agora amarrado à árvore.
Jan pôs-se em pé, trémulo e alvoroçado.
—Vamos!—gritou, e todos saltaram para o campo aberto.
Ao longe, no vale, alguém berrou uma ordem, mas os homens e o cão prosseguiram colina abaixo e através do regato que corria no sopé. Lá atrás ouviram uma campainha de telefone soando no interior da guarita, e o som de um apito distante.
—Corram! corram!—gritava An-ton.
Outro descampado se estendia à frente deles e, mais além, um bosque. Correram para o abrigo das árvores e, por fim, souberam que seus pés pisavam solo alemão.
Tão logo entregou sua carga sã e salva às autoridades da Alemanha Ocidental, Anton despediu-se. Deveria regressar à Tchecoslováquia e arriscar de novo a vida para conservar aberto o caminho de fuga para outros proscritos.
—Praza aos céus que nos encontremos outra vez em horas mais felizes—disse ao partir.-—Confesso que me enganei a respeito do cão. Ele foi a nossa salvação.

Os Anos Finais


DENTRO de uma semana após sua chegada à Alemanha Ocidental, Jan recebeu notícias confortadoras de sua pátria. Um refugiado tcheco, que o havia conhecido em Praga, informou que nem Tatiana nem Ro-bert tinham sofrido represálias, e estavam morando sossegadamente com os pais dela. Esta informação convenceu Jan de que fora acertada a decisão de fugir da Tchecoslováquia. A seguir solicitou reingresso na RAF e foi aceito.
 Em sua viagem para a Inglaterra,entretanto, não havia aquele grupo de amigos tchecos para contrabandear Antis na barba dos inspetores, e Jan se viu forçado a entregá-lo para a quarentena legal de seis meses. Surgiu então uma dificuldade de ordem financeira. O reengaja-mento de Jan se dera no posto mais baixo da hierarquia, de modo que seus vencimentos não permitiriam pagar as taxas do canil. Desesperado, ele apelou para o Dispensário Popular de Animais Doentes, em Londres, apresentando um relato completo da vida de Antis.
A resposta do dispensário foi além da expectativa de Jan. Não só foram pagas as taxas, mas ainda deram ampla publicidade à notável história de Antis, resultando disso que, em março de 1949, foi-lhe tributada uma homenagem sem prece-cedentes. Antis tornou-se*o primeiro cão estrangeiro a receber a Medalha Dickin—a Victoria Cross do mundo animal. Com um comovente discurso de apresentação, o Marechal-de-Campo Archibald Wavell, um dos mais eminentes soldados ingleses, referiu-se à "extraordinária coragem, devoção ao dever e salvamento de vidas em diversas ocasiões, no tempo em que serviu na Real Força Aérea".
"Estou certo", concluiu o Marechal,  "de  que todos me acompanham nas congratulações por esta recompensa, Antis, e desejamos que possas ostentá-la por muitos anos."
Infelizmente esses anos foram pou cos, mas no decorrer deles os dois amigos viveram mais inseparáveis do que nunca. Jan não teve mais notícias da mulher, do filho nem dos pais, de modo que Antis se tornou toda a sua família. Quando a vista do animal começou a apagar-se e o focinho a embranquecer com a idade, o cão não suportava a menor separação de seu bem-amado dono.
Todos os anos, na noite de Natal, onde quer que estivesse servindo, Jan cumpria um invariável ritual. Ao lado de uma árvore em miniatura, toda enfeitada e coberta de neve artificial, ele colocava os retratos de Ta-tiana, de Robert e de seus pais, assim mantendo pelo menos um laço tangível com seu lar desfeito. No Natal de 1952 Jan concluiu a arrumação de sua árvore e recolheu-se cedo. No meio da noite despertou, sentindo um estranho peso no peito. Era Antis, que repousara a cabeça ali.
Aquilo era muito estranho. Uma vez deitado, o cão conservava-se sempre em seu cobertor até à manhã seguinte.


—Que é que você tem, Antis ?—
perguntou Jan.—Volte para sua cama, meu velho.
Jan ouviu um trémulo suspiro, depois o arranhar agitado das patas do animal no chão, finalmente o baque de um corpo que cai.
Imediatamente Jan acendeu a luz. Antis jazia de lado, sem forças para se levantar. O amigo carregou-o para sua cama e começou a fazer massagens nas patas do cão, continuando o tratamento a intervalos durante o resto da noite. Por volta do meio-dia Antis conseguiu pôr-se em pé, mas estava fraco demais para sair com seu amo, de modo que Jan ficou com ele, enquanto na base se realizavam as comemorações de Natal. De sua janela ele podia ver as luzes do salão e ouvir os risos e os cânticos. Por duas vezes amigos seus foram chamá-lo, sugerindo-lhe que deixasse Antis sozinho durante algum tempo. Jan agradeceu, mas continuou sua vigília.
Sentado à mesa em que resplandecia a àrvorezinha de Natal, Jan contemplava a fotografia de Tatiana. Ela estava radiante em seu vestido de noiva, e ele recordou como Antis se havia emaranhado no véu quando eles saíam da igreja. Nesse momento, no salão, estavam cantando "Noite Feliz", e Jan reviveu outras festas de Natal, em outras guarnições. O quarto se encheu de fantasmas: Ka-rel e Joshka, Ocelka e Ludva^-de-zenas de amigos que tinham partido. Em breve Antis estaria com eles.
Pareceu a Jan que tinha decorrido um século desde o dia—havia 12 anos—em que encontrara aquele cãozinho na terra de ninguém.




Extraído da Revista Seleções de Reader's Digest de dezembro de 1960.

ANTIS Alsatian Dog, awarded the Dickin Medal on 28th January 1949. He served with his Czech owner in the French Air Force and RAF from 1940 to 1945 in both North Africa and England. He is the first foreign dog to receive the Dickin Medal. http://homepage.ntlworld.com/k.westgate/history5.htm

terça-feira, 15 de setembro de 2009

A Terceira Esquadra e o grande tufão


Um sombrio vendaval, auxiliado por «grandes erros», humilhou uma altiva esquadra em sua hora de triunfo

A Terceira Esquadra e o grande tufão

Hanson W. Baldwin
Redator de assuntos militares do «Times» de Nova York
Condensado de « The New York Times Magazine»


ERA a maior esquadra que já sulcara os mares e vinha de alcançar o seu maior triunfo. Mas a mão de Deus estava estendida sobre ela e um grande vento soprou; a esquadra foi dispersada e devastada sobre o oceano. A inexorável lei das tempestades fora esquecida e a Terceira Esquadra Norte-Americana, sob o comando do Almirante William F. Halsey, sofreu o castigo: mais homens perdidos, mais navios afundados e avariados do que em muitos dos combates da guerra no Pacífico.
Em meados de dezembro de 1944 a batalha do Golfo de Leyte, nas Filipinas, já tinha passado à história; havia apenas poucas semanas que o Império Nipônico recebera um golpe fatal. A invasão da Ilha de Mindoro, ocupada pelos japoneses, começara em 15 de dezembro e a Terceira Esquadra achava-se esgotada por três dias de ataques os mais variados contra a ilha de Luçon. Quando a esquadra se retirou para reabastecer-se, estava à vista o começo do fim. O Almirante Halsey, com seu pavilhão içado a bordo do encouraçado New Jersey, transmitiu aos navios-tanque e à Força Tarefa 38, constituída
por porta-aviões, a posição onde seria feito o reabastecimento—cerca de 500 milhas a leste de Luçon. Mas o mar tornou-se agitado na noite de 16 para 17 de dezembro e o pessoal sentiu o mal-estar provocado pela tempestade que se aproximava.
Domingo, 17 de dezembro: O dia amanheceu sombrio e encoberto, o mar picado, o vento forte porém variável, os navios sacudindo violentamente. A Terceira Esquadra navega através de centenas de milhas de oceano, os mastros e os conveses de voo arfando e caturrando, descrevendo amplos arcos sobre o horizonte. Aqui, em toda a sua majestade, está a esquadra que dominou o orgulho do Japão—duas dezenas de porta-aviões, oito encouraçados, numerosos cruzadores e dezenas de contra-torpedeiros. A Terceira Esquadra entra em contacto com os 24 grandes navios-tanque de esquadra e com a respectiva escolta, e, apesar dos vagalhões violentos, o reabastecimento principia. As exigências do combate, o apoio necessitado pelos soldados que estão lá em Mindoro, não permitem qualquer concessão à natureza.
Os contratorpedeiros—os navios pequenos que dançam em qualquer mar, navios cujos tanques de óleo estão vazios por terem passado dias cruzando a toda velocidade—aproximam-se para ficar a contrabordo dos navios-tanque. O oceano, porém, não o permite. Alguns navios conseguem embarcar uma pequena quantidade de óleo antes que as mangueiras se partam e os navios, jogando, afastem-se violentamente; porém a maioria parte uma mangueira atrás de outra, e enquanto os contramestres amaldiçoam, as ondas se quebram violentamente nos conveses dos navios-tanque e o óleo corre sobre as chapas de aço.
Nas primeiras horas da tarde o reabastecimento é suspenso; o rumo passa a ser noroeste, mudado, posteriormente, para sudoeste, a fim de evitar o centro da tempestade que se aproxima, centro este que, no entanto, não está localizado nitidamente. As leituras dos barômetros caem, os ventos gemem, mas a Terceira Esquadra navega em formatura de cruzeiro.
Segunda-feira, 18 de dezembro: A noite está horrível; nas mesas da praça d'armas dos contratorpedeiros colocaram-se as guardas para impedir que os pratos caiam; o pessoal que foi dormir "está amarrado aos beliches, mas os bruscos movimentos dos navios, consequência do mar agitado, só permitem um sono cheio de sobressaltos. As leituras dos barómetros caem ininterruptamente. As rajadas de chuva, o borrifo e a espuma reduzem a visibilidade; é difícil aos navios conservarem as posições que lhes competem na formatura da esquadra—às vezes isto é quase impossível. Os ventos batem e açoitam «mas as posições estimadas para o centro da tempestade não concordavam umas com as outras» e só pela madrugada é que a Terceira Esquadra compreende que está no caminho do maior e pior de todos os tufões. O rumo da esquadra é mudado para 180 graus—diretamente para o sul— mas é muito tarde: a fúria do tufão está desencadeada sobre os navios.
O quarto de 8 às 12 começa, empregando-se uma velha expressão marinheira, «com a onça solta». A violência do vento é terrível; ele guincha e relincha, ruge e estremece, bate e agarra. Os navios estão oscilando intensamente—castigados pelo vento, jogando rapidamente com inclinações tremendas e com movimentos bruscos e violentos, caturrando e arfando, mergulhando profundamente sob toneladas d'água, levantando-se com esforço, esguichando espuma e sal através das seteiras dos canhões e dos escovéns. As rajadas violentas acompanhadas por aguaceiros, os borrifos que picam como se fossem granizo, e as nuvens baixas, arrastadas pelo vento forte, suprimiram completamente a visibilidade. A Terceira Esquadra está dispersa; poucos são os navios que vêem os outros; somente nas telas dos radares os traços luminosos aparecem para mostrar, em confusão tumultosa, a extensão do poder humano.
Os navios-tanque completamehte carregados, os pesados encouraçados e os porta-aviões maiores jogam e mergulham profunda e violentamente, mas sem perigo, em mares encapelados; para os porta-aviões de escolta, os porta-aviões ligeiros e os contratorpedeiros, entretanto, a luta é de vida ou de morte. Alguns dos |navios da esquadra estão exatamente no caminho pelo qual vai passar o tufão, onde os ventos mais fortes os empurram para o centro da tempestade, e no mínimo um dos grupos de navios da Força Tarefa está exatamente na zona adjacente ao «olho» do tufão, onde o redemoinho do vento e o oceano borbulhante alcançam seu efeito máximo. Um navio atrás de outro perde seguimento e é arrastado para os terríveis cavados formados entre as ondas, não obedecendo mais ao leme.
A bordo do porta-aviões ligeiro Cowpens um avião de caça, amarrado, por três cabos ao convés de voo, solta-se por ocasião de um balanço de 45 graus e se despedaça de encontro ao passadiço, causando um incêndio. A guarnição está a combatê-lo quando uma muralha maciça de água verde rasga, como se fosse um abridor de latas, as portas de aço de bombordo do convés dos hangares. A guarnição combate o incêndio quando o vento e o mar arrancam de sua base de aço a plataforma do canhão de 20 milímetros de vante. A guarnição.também combate o incêndio ao mesmo tempo que as bombas arrebentam os seus cabides no paiol e rolam desordenadamente sobre o convés; ao mesmo tempo que jeeps e tratores, um pequeno guindaste e sete aviões são arrancados de suas peias, varridos do convés de voo e lançados ao mar agitado. Mas é o próprio mar que, por fim, extingue o incêndio, da mesma forma que fora ele que o causara; o avião incendiado solta-se do passadiço e cai no tumulto das ondas.
A proporção que o dia passa, os livros de quarto esgotam os superlativos náuticos. As leituras dos barômetros caem de um modo jamais visto por qualquer marinheiro. Alguns navios registram exatamente 710 milímetros; o Dewey lê no seu barómetro 693 milímetros—possivelmente a menor leitura até hoje registrada no mundo. O navio-tanque Nantahala, juntamente com outros navios de um grupo reabastecedor localizado a nordeste do corpo principal da esquadra, próximo ao centro da tempestade, registra para velocidade do vento 124 nós. [Aproximadamente 229,80 km/h]
O vento vira, rapidamente, à proporção que a trajetória do tufão se curva, soprando do norte e do sul, de leste e de oeste—mudando de direção como fazem todos os ciclones— e aumentando de intensidade até alcançar a Força 17, muito além daquelas indicadas na tabela utilizada para a medida da intensidade do vento pelos antigos marinheiros, a escala Beaufort—a qual define o seu valor máximo, Força 12, como «um furacão com velocidade superior a 65 nós».
O vento possui milhares de notas musicais—o baixo da ameaça rosnada, o soprano dos estais tão fortemente distendidos que zumbem como cordas de arco. As cristas das vagas—mais de 20 metros do cavado à crista—estão achatadas pelo vento e são projetadas em linha reta devido à sua violência; a chuva e os borrifos misturam-se num lençol horizontal de água; ninguém pode dizer onde o oceano termina e o céu começa. Sobre todas as coisas paira a cacofonia dos navios desconjuntados que rangem, do estalido das anteparas, do ranger das colunas, do deslizar, despedaçar e rugir do entulho que escorrega de antepara para antepara.
As tentativas para permanecer em formatura ou para mudar de rumo a fim de aliviar seus balanços significam devastação para alguns navios. Alguns dos contratorpedeiros mais aliviados estão à deriva; todas as possíveis combinações de ângulos de leme e de rotação de máquinas não conseguiram tirá-los dos cavados das ondas; eles são arremessados lateralmente, jogados com violência para um e outro bordo, e os seus costados estão bastante amassados pela ação do vento e do mar,e flutuam, desgovernados, ao sabor do vento.
Os porta-aviões ligeiros e de escolta comportam-se pouco melhor. Os conveses dos hangares estão transformados em infernos de chamas e de metal que se despedaça, inferno de fogo, vento e mar.
A bordo do porta-aviões ligeiro San Jacinto os homens dos grupos de controle de avarias e combate a incêndios se amarram, eles próprios, a cabos suspensos ao teto dos hangares e, balançando e deslizando como pêndulos sobre o convés escorregadio, arriscam suas vidas para pear firmemente a massa de entulho que desliza, rangendo, de um lado para outro. As praças de caldeiras nº l e 2 do Monterey são abandonadas devido à fumaça espessa proveniente de um incêndio no convés dos hangares; as caldeiras são guarnecidas apenas pelos homens estritamente indispensáveis, usando máscaras especiais para poderem respirar; uma explosão provocada por vapor de gasolina mata um marinheiro; um outro, encurralado pelas chamas, morre queimado; muitos ficam feridos.
O contratorpedeiro Dewey luta quase até à morte. Com a tempestade uivando como um fantasma agou-rento, o sinaleiro de serviço vai rabiscando no livro de quarto, à proporção que as avarias ocorridas são transmitidas ao passadiço:
10h 20m—Leme do passadiço fora de ação; governando com o leme de ré.
11h 30m—Máquinas principais paradas—quadro de distribuição principal de energia elétrica com curto circuito devido à água salgada. Em cada um dos balanços mais fortes entram de duas a quatro toneladas de água pela aspiração da ventilação forçada principal n° 2 . . .
O navio está à matroca. A ordem dada à guarnição é permanecer a bombordo.
Jogando e caturrando mais. O inclinômetro indicou 73 graus para boreste e parou por alguns segundos.

Mas o Dewey flutua ainda quando a manhã se esvai. O mesmo não acontece com os contratorpedeiros Mo-naghan e Spence.
O Monaghan, com 12 estrelas representativas das batalhas em que tomou parte, pintadas em seu passadiço, caminha para a morte—sem que a esquadra o saiba. Suas 1.500 toneladas de aço estão devastadas e deformadas; sua baleeira de boreste embarca água quando os turcos mergulham no oceano verde. Contudo, há poucos indícios de desastre.
Cerca de meio-dia o vento empurra o Monaghan fazendo-o adernar demasiado sobre boreste. Ele se esforça para voltar novamente à posição normal—e consegue-o, porém muito vagarosamente. No alojamento a ré 40 ou 50 homens agarram-se às colunas e suplicam: «Fazei-o voltar, Santo Deus! Fazei-o voltar!» O navio volta vagarosamente à posição normal. As luzes, porém, se apagam; novamente o jogo excessivo para boreste e, como sempre, o navio luta, às sacudidelas, para fugir ao desastre.
Finalmente o vento trata-o com extrema brutalidade; o Monaghan aderna pesadamente para boreste— 30, 40, 60, 70 graus—e, esgotado, se deita sobre o costado para morrer entre um turbilhão de espuma branca e os clamores das Valquínas da tempestade. Dezoito oficiais e 238 marinheiros afundam com o navio.
O Spence desaparece quase ao mesmo tempo. Sem lastro, com pouco combustível, ele se desloca como um pedaço de cortiça e como um pedaço de cortiça é jogado entre os terríveis cavados das ondas, semelhantes a vales profundos e estreitos. O navio aderna mais de 72 graus para bombordo—e assim permanece. As luzes se apagam; as bombas param—o coração do navio morre antes que o corpo morra. Pouco antes do meio-dia o Spence afunda—2.100 toneladas de aço com a potência de 60 mil cavalos.
A esquadra está dispersa sobre uma larga extensão do oceano; alguns dos navios sentiram em toda a plenitude a fúria da tempestade; outros ainda irão senti-la. A intensidade máxima da procela é alcançada entre 11 e 14 horas.
Para o contratorpedeiro Hull, tendo a bordo a maior parte da correspondência da esquadra, o quarto de meio-dia às quatro é o último. A proporção que o vento aumenta de intensidade até atingir um valor estimado em 110 nós, «sua força deita o navio sobre o costado de boreste e mantém-no de encontro à água até que as ondas entrem no camarim de governo». O jovem Capitão-de-Corveta James Alexander Marks afasta-se de seu navio emborcado, o primeiro navio que ele comandara, num mar «batido até fazer espuma», um mar tão ávido por vidas que os coletes salva-vidas são arrancados aos pedaços das costas dos poucos sobreviventes.
O contratorpedeiro Dewey sobrevive, apesar de avariado quase mortalmente. A água verde derrama-se sobre o lais de boreste do passadiço quando o navio se inclina de cerca de 80 graus para boreste—e continua vivo para contar a façanha—talvez o primeiro navio na história marítima a sobreviver a um balanço tão forte.
Às 13 horas, o barômetro alcança sua leitura mínima. Mas o tufão já tinha feito o pior mal que poderia ter feito; às 13h e 14m o barômetro registra uma ligeira ascensão e às 14h 39m o vento abranda atingindo cerca de 80 nós. A tempestade gira para seguir em direção às vastidões do Pacífico durante o resto daquele dia—segunda-feira. Mesmo na têrça-feira os mares ainda estão horríveis—mas o grande tufão tinha passado.
Os sobreviventes do Monaghan, do Hull e do Spence são infelizmente pouquíssimos. Os navios da esquadra, esmiuçando o oceano, encontram um punhado de marinheiros esgotados e feridos, os quais compreenderão para sempre, com maior intensidade do que quaisquer outros homens vivos, o que significa a fúria do mar.
O grande tufão custou 790 homens, entre mortos e desaparecidos. Mais de 80 homens ficaram feridos; 146 aviões foram lançados pela borda fora ou avariados em tal extensão que não puderam ser reparados. Os navios menores estavam avariados e esgotados; somente a lista de avarias do Monterey cobria nove páginas dactilografadas em espaço simples. Treze navios exigiam grandes reparos e nove outros apresentavam avarias de menor vulto. Os ataques planejados contra Luçon foram cancelados e a Terceira Esquadra se arrastou—avariada e com os navios fora de formatura—para o atol de Ulithi.
Uma Comissão de Inquérito da Marinha Norte-Americana, convocada para examinar o que ocorrera, verificou «grandes erros cometidos ao ser efetuada a previsão do centro e do deslocamento» do tufão. O Almirante Chester W. Nimitz, Comandante-em-Chefe da Esquadra Americana do Pacífico, realçou que as avarias produzidas «representaram um golpe mais imobilizador do que seria possível esperar em quaisquer circunstâncias exceto em um combate de grandes proporções.» E o Almirante comandante da Força de Reabastecimento fez um comentário sóbrio: «... não existe navio sobre as águas que não possa ser virado pelo vento e pelas vagas.»



Texto retirado da revista Seleções do Reader's Digest de Junho de 1952

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Torpedos Humanos Em Gibraltar

Os heróis submarinos da Itália na Segunda Guerra Mundial


Torpedos humanos em Gibraltar


Por Frank Goldsworthy
Ex-oficial do Serviço de Informações da Marinha Inglesa em Gibraltar


 NUMA NOITE sem lua, em setembro de 1941, um submarino, com a coberta à flor d'água, penetrou na Baía de Cadiz, na costa sudoeste da Espanha, e ancorou ao longo do navio-tanque italiano Fulgor. O submarino era o Scirè da Marinha Italiana; seu comandante, o Príncipe Junio Valerio Borghese; sua missão, organizar tripulações de torpedos-humanos, para o ataque a navios ingleses fundeados em Gibraltar, a 80 milhas de distância, apenas.
Naquela noite teve início, dentro da guerra maior, uma guerra que durou dois anos, travada em silêncio sob a superfície da Baía de Gibraltar. Contra um passivo de três homens mortos e três capturados, os torpedos-humanos italianos puseram a pique ou danificaram, em sete operações, 14 navios aliados. Cada uma dessas operações exigia dos atacantes um arrojo que honraria qualquer marinha do mundo.
Quando a Itália entrou na guerra, em 1940, o navio-tanque Fulgor, de 6.500 toneladas, refugiara-se na Baía de Cadiz. Dentro de poucos meses estava transformado num posto secreto de abastecimento para submarinos italianos. Agora, a seu bordo, aguardando o Scirè, achavam-se seis operadores de torpedos-humanos que haviam atravessado a Espanha com passaportes falsos.
Minutos depois, o Scirè punha-se de novo em movimento com eles no bojo. Deslizava, periscópio apenas submerso, em direção ao extremo sudoeste da Baía de Gibraltar, em águas espanholas, distante quatro milhas do porto inglês. Enquanto se mantinha ainda abaixo da superfície, seis homens — vestindo macacões de borracha, inteiriços, com aparelhamento respiratório-subiram pela escotilha de acesso para o convés. Aí, presos em berços, estavam três torpedos de 6 metros e 70 de comprimento, com ogivas ou cabeças de combate destacáveis, para dois homens cada um. Os tripulantes—um oficial e um suboficial para cada torpedo—escarrancharam-se em seus torpedos, acionaram as alavancas de lançamento e subiram à superfície. Começava o ataque.
Os ITALIANOS chamavam ao torpedo maiale (porco), pois ele lembrava de fato um porco—e um porco nadando não seria mais difícil de manobrar... Em seu bojo o torpedo tinha reservatórios de ar comprimido para regular a profundidade e baterias para a propulsão da hélice dupla. O máximo de velocidade dos torpedos usados em 1941 era de três nós: uma velocidade maior arrebataria de seus lugares os operadores. Seu raio de ação era de dez milhas.
Os tripulantes iam escarranchados como cavaleiros. O oficial da dianteira controlava a velocidade, a direção, o mergulho, e encarregava-se ainda da sonda e bússola luminosas para uso abaixo da superfície. Normalmente os tripulantes viajavam com água até ao queixo, mas se havia barcos-patrulha por perto, prosseguiam em sua rota submersos.
Um operador de torpedo-humano narra assim um ataque:
"A gente vê a silhueta do navio-alvo contra o céu. A uns 50 metros de distância orientamo-nos, enchemos o tanque de imersão e a água se fecha sobre as nossas cabeças. Em baixo é frio, escuro e silencioso."
"Quando atingimos profundidade suficiente, fechamos a válvula de imersão, acionamos o motor e avançamos lentamente. Passamos da escuridão para uma escuridão mais profunda: estamos debaixo do navio. Paramos o motor e vamos esvaziando os tanques de água. Enquanto subimos, erguemos a mão acima da cabeça. Pensamos se iremos tocar chapas lisas ou cracas afiadas como facas, que nos cortarão os dedos, ou—horror dos horrores—a roupa de borracha que vestimos, deixando entrar a água do mar."
"Ah! Eis o fundo do navio. Fazemos o torpedo recuar até que o tripulante n° 2 possa tocar um dos frisos de 30 centímetros de largura que correm ao longo de cada lado do casco dos grandes navios. Sentimos um tapa nas costas. O n° 2 achou o friso e está fixando nele uma pinça. Dois tapas. A pinça está presa. Agora adiante, para o outro friso."
"O n° 2 está arriando um cabo. Prende a segunda pinça, depois volta ao centro do navio. O n" 2 passa em volta da gente para ir até à ogiva de combate e amarra-a ao cabo. O torpedo corcoveia levemente ao ser desligado da cabeça. O relógio que determinará dentro de duas horas e meia a explosão bate os segundos inexoravelmente. O n° 2 volta ao seu lugar. Três tapas. A tarefa foi concluída. Acionamos o motor, saímos de baixo do navio, subimos lentamente. Agora podemos pensar em fugir."
LICIO VISINTINI, o mais ousado do grupo e um dos cérebros da ofensiva de torpedos-humanos, levou seu torpedo, nessa noite de setembro de 1941, até ao interior do porto de Gibraltar. Tinha um instrumento para cortar a rede de aço que defendia a entrada do porto, mas não precisou utilizá-lo. Quando a rede foi baixada para ciar passagem a um contratorpe-se atrás dele. Deixou a sua ogiva de combate no fundo de um navio-tanque, forçou caminho por sob a rede e escapou.
As outras duas tripulações deixaram suas cabeças de combate pendentes debaixo de navios fundeados na baía, meteram a pique suas estranhas embarcações e nadaram para a costa espanhola. A sua espera na praia encontrava-se o comandante Pierleoni, oficial da Marinha Italiana, enviado diretamente à Espanha para dirigir as atividades de sabotagem, sob a capa de um cargo consular, em Barcelona. Quando conduzia os homens para longe do local, foram detidos por uma patrulha espanhola. Pierleoni resolveu explorar a simpatia do oficial espanhol pelo Eixo.
—Estes homens acabam de atacar os ingleses, disse.
O golpe foi bem sucedido. Os homens receberam roupas enxutas, café, conhaque e cigarros. Enquanto narravam sua história, um estrondo e uma nuvem de fumo indicaram que havia explodido a popa do navio-tanque Denbydale. Logo depois houve explosões semelhantes sob o cargueiro Durham e o navio-tanque Fiona Shell.
Mais tarde esse torpedeadores foram enviados de avião para a Itália, a fim de receberem os aplausos do público italiano.
PIERLEONI passou o inverno de 1941-42 organizando um grupo de sabotagem na Espanha. Em julho estava preparado para a sua primeira operação de terra contra navios aliados ancorados em Gibraltar—um ataque em massa por 12 membros do «Gamma», contingente de nadadores de assalto. Os nadadores reuniram-se numa casa perto de La Linea, território espanhol imediatamente acima da zona inglesa de Gibraltar. Na cozinha, vestiram compridos macacões de lã, sob outros, inteiriços, de borracha, em que se enfiavam desde os pés até ao pescoço, e muniram-se de aparelhamento respiratório e capacetes especiais de proteção contra as redes de aço. Eram 11 horas da noite de 13 de julho quando se dirigiram para a praia.
Nas costas e no peito cada homem carregava «bombas-despertadores»— pequenos engenhos engastados em anéis infláveis de borracha, capazes de se fixarem por pressão aos Cascos das embarcações, até que o relógio detonador esgotasse o seu tempo. Eram minúsculas aquelas cargas de dois quilos em comparação com as ogivas de combate dos torpedos-humanos, mas davam para perfurar chapas de aço. Na baía viam-se os vultos escuros de 30 navios aliados. A cada homem foi dito que escolhesse o seu objetivo.
Entre os nadadores figurava Vago Giari, um rijo camponês de ombros largos, com a destreza aquática de uma foca. Na escuridão, sob um navio que visava, Giari chocou-se com outro nadador. Discutiram por causa do objetivo. Cada um dizia que era seu.
—Estava doido, completamente doido, contou Giari depois, referindo-se ao companheiro.
Quando subiu à tona, cumprida sua missão, o outro, tendo tirado o bocal, começou a gritar com ele.
—Nunca pude compreender como a tripulação do navio não o ouviu, disse Giari.
Dessa vez ele não discutiu. Afundou a cabeça do homem na água e manteve-a assim até que ele perdeu todo o fôlego para gritar.
Seis nadadores regressaram sãos e salvos, os outros seis caíram nas mãos de uma patrulha espanhola e foram «internados» num hotel de Sevilha.
O ataque constituiu apenas um sucesso relativo. Alguns dos nadadores não atingiram seus objetivos, umas quantas bombas foram arrancadas pela força da água dos cascos onde haviam sido fixadas e explodiram na superfície. Mas quatro navios ficaram avariados. Uns dois meses depois Giari e um companheiro avariaram seriamente outro navio.
DENTRO do porto de Algeciras, à vista de Gibraltar, achava-se fundeado o navio-tanque italiano Olterra. Propositadamente arrombado em água rasa por seu comandante, na ocasião em que a Itália declarara guerra, encontrava-se em 1942 sob uma guarda de «neutralidade». Os jovens soldados espanhóis, entretanto, mostravam-se mais interessados em surrupiar cigarros do que em relatar incidentes suspeitos.
Os incidentes eram realmente suspeitos, pois eram organizados por Licio Visintini. Visintini começou a construir uma base secreta dentro do Olterra. Primeiro os italianos cortaram uma seção de 7 metros e meio de comprimento no anteparo de aço que separava o compartimento da proa de um pequeno porão, e equiparam-na com dobradiças. Dizendo aos espanhóis que tinham necessidade de limpar os tanques de flutuação, esvaziaram os tanques da proa até que esta se ergueu bem alto fora d'água.
Certa madrugada, com a sentinela espanhola dormindo um sono pesado de conhaque, fêz-se a abertura de uma porta no casco do navio, abrindo para o compartimento da proa, abaixo da linha d'água normal. A porta abria para dentro—e fechava tão bem que só mesmo um mergulhador poderia dar por ela. Quando o navio voltou à nivelação normal, o compartimento da proa alagou, mas o porão ficou seco.
O plano era pendurar torpedos-humanos em polias no compartimento da proa. Nas noites de ataque, poderiam ser lançados à água, passando pela porta feita no casco.
Inicialmente, porém, os torpedos tiveram de ser trazidos da Itália. Dêsse modo, os italianos disseram aos espanhóis :
—Temos de reparar as máquinas do navio para nos prepararmos para a vitória.
Se os espanhóis se houvessem mostrado curiosos sobre os caixotes de «tubos para caldeira» que chegaram em caminhão da Itália, teriam descoberto em cada um deles um torpedo-humano de 6,70 m de comprimento.
Diversos ataques foram lançados do Olterra. O primeiro, na noite de 7 de dezembro de 1942, custou a vida a Visintini e seu companheiro. Todas as noites a Marinha Inglesa fazia disseminar, a pequenos intervalos de tempo, cargas explosivas nas águas do porto. Uma dessas cargas matou os dois torpedeiros. Seus corpos foram encontrados duas semanas depois dentro do porto de Gibraltar. Mas o segredo do Olterra continuou inviolado.
Só em maio de 1943 os italianos conseguiram trazer «maquinaria» suficiente para que o Olterra reiniciasse seus ataques. Desta vez abandonaram a esperança de penetrar no porto de Gibraltar, passando a escolher como objetivo navios ancorados ao largo. Na noite de 7 de maio três torpedos-humanos, partindo do Olterra, efetuaram um novo ataque e regressaram sem baixas. Dois cargueiros aliados foram pesadamente danificados, um terceiro perdeu-se inteiramente.
Outro ataque vindo do Olterra teve lugar a 3 de agosto de 1943, dirigido pelo comandante Ernesto Notari. Sob o objetivo—o navio norte-americano Harrison Grey Otis, tipo Liberty, de 7.000 toneladas—Notari encontrou um novo dispositivo de defesa, arame farpado pendente na escuridão. Seu auxiliar era o sub-oficial Giannoli, um substituto de última hora. Relativamente bisonho, Giannoli deixou escapar o cabo que deveria ser passado de um para outro dos frisos laterais e a cabeça do torpedo teve de ser diretamente pinçada à quilha. Enquanto isso se fazia, o torpedo começou a subir. Notari abriu demais as válvulas de emersão e o torpedo mergulhou sem controle. Com os pulmões estourando, a cabeça rébentando, Notan lutava com os controles, enquanto a agulha do indicador de profundidade ia passando do limite de 34 metros—três vezes a profundidade normal de treinamento.
Tão rápido como mergulhara, o torpedo disparou para a superfície. Notari pensou espatifar a cabeça de encontro ao fundo do navio ou estraçalhar a roupa de borracha nos arames farpados, mas, com um forte ruído peculiar, o torpedo rompeu a água e se encontrava a um metro de distância do navio.
Semi-inconsciente, incapaz de pensar ou de agir, Notari permaneceu tombado sobre os botões de controle, aguardando gritos ou tiros. Nada aconteceu. Lentamente, readquiriu a capacidade de raciocínio. O motor só funcionava à velocidade máxima, e, a essa velocidade, mergulhar era impossível.
Optou pela única possibilidade de salvação que lhe restava—a retirada a toda velocidade pela superfície, numa extensão de cerca de quatro milhas, esperando que a qualquer momento a viva fosforescência da água em sua esteira pusesse um barco-patrulha no seu encalço.
Então aconteceu um milagre. Um cardume de golfinhos fez-lhe companhia até Algeciras, brincando e proporcionando-lhe assim um perfeito disfarce para a sua esteira e um regresso seguro ao Olterra.
Nesse ínterim, Giannoli, arrancado de seu assento no torpedo pela velocidade do mergulho, mantinha-se à tona, do outro lado do navio, pensando que Notari se tivesse afogado. Nadou para a popa, desvencilhou-se do equipamento respiratório e do invólucro de borracha e, durante duas horas, deixou-se ficar agarrado ao leme, gelando na água por dentro do macacão de lã.
Quando, pelos seus cálculos, seus companheiros já deviam estar de volta ao Olterra e, portanto, se aproximava o momento da explosão da ogiva de combate que ele próprio havia fixado, nadou ao longo do navio e gritou por socorro.
Foi içado para bordo. A notícia de sua captura foi imediatamente radiografada para o Comando Naval, que, sem perda de tempo, enviou uma lancha-patrulha, com um tripulante mergulhador, ao Harrison Grey Otis, para recolher o prisioneiro e examinar o navio. A lancha foi atada junto ao costado.
Já Giannoli tinha sido levado para a lancha e o suboficial Bell, o mergulhador, estava metendo o pé na água, quando a carga de 230 quilos explodiu do outro lado do navio.
A explosão abriu um enorme rombo na casa das máquinas. Um estilhaço, atravessando toda a largura do navio, matou o marinheiro que guardava Giannoli junto à roda do leme.
Minutos depois dessa explosão, a ogiva de combate do aspirante Cella partia em dois o navio-tanque norueguês Thorshovdi, espalhando pela baía grandes manchas de óleo grosso. A terceira bomba avariou seriamente o Stanridge, navio inglês de 6 mil toneladas. Os três navios afundaram em água rasa.'
Com exceção de Giannoli, todos os italianos regressaram sãos e salvos ao Olterra, partindo no dia seguinte para a Itália.
Os GRUPOS de assalto italianos não limitaram suas atividades à área de Gibraltar. Em 1941, três torpedos-humanos italianos penetraram no porto de Alexandria e, graças à ação dos seis homens que os tripulavam, alterou-se do dia para a noite o equilíbrio do poder naval no Mediterrâneo oriental, ficando os Aliados em inferioridade.
Às três horas da madrugada do dia 19 de dezembro, dois italianos—o Tenente de La Penne e o suboficial Bianchi—foram vistos nadando ao longo do navio de combate Valiant, que se encontrava no porto, juntamente com seu companheiro de classe, o Queen Elizabeth. Os dois homens foram içados para bordo, mas nenhum deles respondeu às perguntas que lhes foram feitas. O Comandante Morgan (mais tarde Vice-Almirante Sir Charles Morgan) ordenou sua detenção no porão do navio, no ponto em que imaginava que houvessem colocado uma ogiva de combate. Por espaço de duas horas e meia os italianos permaneceram calados.
Às 5 e 45, o Tenente de La Penne pediu para falar ao comandante. Disse:
—Quero preveni-lo de que seu navio vai sofrer uma explosão em poucos minutos.
Não quis dizer mais nada. O comandante Morgan deu ordens para que a tripulação subisse ao convés e mandou fechar as portas de vedamento d'água. Às 6 horas e 4 minutos uma forte explosão pôs o Valiant fora de ação. Não houve baixas a lamentar.
Quase simultaneamente a casa das máquinas do Queen Elizabeíh foi avariada e inundada por outra explosão de igual violência. Um navio-tanque ancorado perto perdeu a popa e as hélices.
Em 1944, depois do armistício italiano, o Tenente de La Penne ingressou nas unidades de assalto dos Aliados e tomou parte, com distinção e nobreza, num ataque combinado anglo-italiano aos navios do porto de Spezia, sob domínio alemão. Um cruzador e um submarino foram afundados. O Almirante Morgan pretendeu obter para o Tenente de La Penne uma condecoração britânica, mas a Itália estava ainda em guerra com a Inglaterra e a condecoração foi recusada.
EM MARÇO de 1945 o Príncipe Regente da Itália foi a Taranto inspecionar as unidades navais italianas que serviam junto aos Aliados, e distribuiu condecorações. O Tenente de La Penne adiantou-se para receber a medalha de ouro concedida por sua bravura no ataque ao Valiant. O Príncipe Umberto voltou-se para o Almirante Morgan:
—Venha  aqui, Morgan, disse. Isto lhe compete.
O Almirante Morgan tomou a medalha e colocou-a no peito do homem que  três anos antes pusera fora de ação o navio sob seu comando.



Texto extraído da revista Seleções de Reader's Digest de fevereiro de 1951

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O setembro negro de 1939: as origens da 2ª Guerra Mundial

Pôster do exército alemão promove o ideal de Hitler: enquanto nós lutamos você também deve trabalhar pela vitória Foto: Reprodução
Pôster do exército alemão promove o ideal de Hitler: "enquanto nós lutamos você também deve trabalhar pela vitória"
02 de setembro de 2009

Voltaire Schilling*
Especial para o Terra

Na madrugada do dia 1º de setembro de 1939, um milhão e meio de soldados alemães, fortemente apoiados pela aviação e por divisões mecanizadas, adentraram pelas fronteiras da Polônia e, em pouco tempo, colocaram as forças armadas daquele pequeno país europeu fora de combate.
Deram início, com aquela invasão, à mais pavorosa das guerras até então vistas pela humanidade. Uma tragédia que se estendeu por seis anos até a capitulação final do Terceiro Reich e de seus aliados entre maio e agosto de 1945.
A Grande Catástrofe
A Segunda Guerra mundial foi a maior catástrofe provocada pelo homem em toda a sua longa história. Envolveu 72 nações e foi travada em todos os continentes direta ou indiretamente. O número de mortos é de cerca de 70 milhões, havendo ainda uns 28 milhões de mutilados.
É difícil calcular quantos outros milhões saíram do conflito vivos, mas completamente inutilizados devido aos traumatismos psíquicos a que foram submetidos - bombardeios aéreos, torturas, fome e medo permanente. Outra de suas características, talvez a mais devastadora, foi a supressão da diferença - até então existente e respeitada - entre aqueles que combateram no front de guerra e a população civil na retaguarda.
Ela não isentou ninguém, foi brutal com todos. Como disse Joseph Goebbels, no seu famoso discurso pronunciado no Sport Palace de Berlim em 18 de fevereiro de 1943, o conflito transformou-se numa "totaler krige", ou "guerra total", visto que, conforme o choque foi se prolongando, nenhum dos envolvidos selecionou seus objetivos militares excluindo os civis.
Atacar a retaguarda do inimigo, suas cidades, suas indústrias, suas estradas de ferro e de rodagem, seus hospitais e casas de repouso, suas usinas e reservatórios de água, matar suas mulheres, crianças e velhos passou a fazer parte daquilo que os estrategistas eufemisticamente classificavam como "guerra psicológica" ou "guerra de desgaste".
Naturalmente que a evolução da aviação e das armas autopropulsoras permitiu que a antiga separação entre linha de frente e retaguarda se visse na prática abolida.
Custo e mobilização
Se a Primeira Guerra Mundial causou um custo de US$ 208 bilhões, a de 1939-1945 atingiu a impressionante cifra de US$ 1,5 trilhão de dólares, quantia que, se investida no combate à miséria humana, teria sumido da face da terra. Aproximadamente 110 milhões de homens e mulheres foram mobilizados, dos quais apenas 30 % não sofreram morte ou ferimento.
Como em nenhuma outra, o engenho humano foi mobilizado integralmente para criar instrumentos cada vez mais mortíferos, sendo empregada a bomba de fósforo, o napalm e, finalmente, a bomba atômica (lançada sobre as cidades nipônicas de Hiroshima e Nagasaki). Como nunca em qualquer outro conflito generalizado, estabeleceu-se uma política de genocídio em massa construindo-se campos especiais para tal fim.
Como bem disse o historiador R.A.C. Parker: "o conceito que a humanidade tinha de si nunca voltará a ser o mesmo".
O cenário que levou à catástrofe
Quase todos os historiadores concordam que a causa diplomática mais profunda da Segunda Guerra Mundial tem sua origem nos Tratados de Paris, assinados entre as potências vencedoras da Primeira Guerra Mundial (EUA, Inglaterra e França) e as vencidas (Alemanha e Áustria) em Versalhes.
A Alemanha se viu despojada da Alsácia-Lorena (que havia conquistado na guerra franco-prussiana de 1870), como teve de ceder à Polônia uma faixa de território que lhe dava acesso ao Mar Báltico. A cidade alemã de Danzig passaria ao controle da Liga das Nações e o território do Sarre, rico em carvão foi cedido por um período de 15 anos à França.
Também foi vedado à Alemanha possuir um exercito superior a 100 mil homens; exigindo-se a desmilitarização da Renânia, região fronteiriça com a França, assim como o desmantelamento das fortificações situadas a 50 km do rio Reno. A outrora grande potência da Europa viu-se compelida a entregar todos os navios mercantes cujo peso ultrapassasse a 1,6 tonelada, assim como ceder gado, carvão, locomotivas, vagões cabos submarinos.
Sua dívida sonante para com os aliados foi fixada na Conferencia de Bolonha, em 21 de junho de 1920, em 269 bilhões de marcos-ouro a serem pagos em 42 parcelas anuais.
Não poderia, por igual, desenvolver pesquisas bélicas, possuir submarinos ou realizar projetos militares. Enquanto isto, o velho Império Austro-Hungaro foi desmembrado pelo tratado de Paz de St. Germain-em-Laye, tendo que entregar o Tirol do Sul para a Itália e reconhecer a independência da Hungria, Checoslováquia, Polônia e Iugoslávia, além de lhe ser vedado a união com a Alemanha. A república austríaca, proclamada em 1918, viu-se proibida de possuir um exercito superior a 30 mil homens.
Estas sanções aplicadas pelos vencedores tornaram-se fonte de amargos rancores que facilmente foram explorados pela extrema direita nacionalista, os nazistas e capacetes-de-aço, que começaram a proliferar na Alemanha em 1919.
O grande erro do Tratado de Versalhes foi ter ferido profundamente o sentimento nacional dos alemães, e, por outro lado, não lhes ter suprimido o potencial industrial. Com 65 milhões de habitantes, e tendo um enorme parque fabril à disposição, era inevitável que a Alemanha, mais cedo ou mais tarde, voltasse a querer ocupar o seu lugar no rol das potencias européias.
Os diplomatas de 1919 se esqueceram da lição do Congresso de Viena, realizado em 1815, quando os vencedores de Napoleão procuravam não humilhar a França, a nação mais povoada da Europa Ocidental naquela época, para que um espírito de vingança não criasse raízes no coração dos seus cidadãos de então.
Esta contradição entre potencial demográfico e industrial, e o não-reconhecimento diplomático de um estatuto privilegiado para a Alemanha, terminou por fazer com que a ascensão de Hitler fosse possível.
O resultado direto das perdas territoriais impostas pelo Tratado de Versalhes fez com que a Alemanha perdesse 14,6% de suas terras aráveis, 74,5% de suas reservas de ferro, 68,1% do seu zinco e 26% dos seus recursos carboníferos.
Perdas territoriais da Alemanha em 1919:
Eupen-Malmedy - entregue à Bélgica
Renânia - desmilitarizada
Bacia carbonífera do Sarre - entregue à França
Alsácia e Lorena - devolvida à França
Schleswig - entregue à Dinamarca
Danzig - controlada por Polônia e Liga das Nações
Prússia - entregue à Polônia
Memel - controlada pela Liga das Nações
Silésia Superior - explorada pela Polônia
Um cordão de ferro ao redor da Alemanha
Os aliados ocidentais, principalmente a França, ao estimularem o surgimento de novos Estados nacionais na Europa Centro-Oriental, visavam substituir a Rússia - então em plena guerra civil - como um fator de dissuasão para qualquer tentativa alemã de agressão.
A Checoslováquia e a Polônia assinaram tratados de defesa mútua com a França e com a Inglaterra. Esperava-se que estes dois países obrigassem os alemães a lutar em duas frentes - como ocorreu durante a Primeira Guerra Mundial - caso tentassem repetir o erro de 1914.
Tinham em mente a imagem de um cordão de ferro passado ao redor das fronteiras alemãs. A França, por sua vez, numa falsa avaliação da guerra de trincheiras, iniciou a construção da Linha Maginot, um complexo sistema defensivo que partia da fronteira suíça até a Bélgica.
Desta forma, esperava evitar um ataque de supresa por parte de seu poderoso vizinho. No entanto, os efeitos morais e psicológicos desta atitude defensiva tiraram do exército francês qualquer alternativa ofensiva, limitando-se a ter que agir caso os alemães o fizessem primeiro.
A Inglaterra, no período entre-guerras, tornou-se cada vez mais apaziguadora, segura de sua situação estratégica e de possuir a mais poderosa frota naval do mundo, dando-lhe a proteção suficiente caso houvesse um novo conflito.
Os EUA - governados por uma série de presidentes republicanos - voltaram, nos anos 20, a adotar a política do isolacionismo, não querendo envolver-se nas querelas dos países europeus. Estas ambigüidades e contradições dos vencedores de 1918 foram habilmente exploradas por Hitler na década dos anos 30.
Causas econômicas
A crise econômica que se abateu sobre o sistema capitalista mundial, a partir de outubro de 1929, foi o fator mais poderoso para que um novo rearranjo do poder em escala mundial fosse ambicionado. A depressão econômica da década de trinta levou os paises capitalistas a tomar medidas protecionistas, visando a salvar os mercados internos das importações estrangeiras, ocorrendo uma verdadeira guerra tarifária.
A produção mundial reduziu-se em 40%, sendo que a diminuição do ferro atingiu a 60%, a do aço 58%, a do petróleo 13% e a do carvão 29%. O desemprego atingiu, com força, os principais países industrializados: 11 milhões perderam o trabalho nos EUA, 6 milhões na Alemanha, 2,5 milhões na Inglaterra, e um número um pouco superior na França. Não está longe da verdade o fato de ter provocado a aflição e o desemprego em mais de 70 milhões de pessoas, contando-se os seus dependentes.
Como a economia já estava suficientemente internacionalizada - com exceção da URSS, que se lançava nos chamados planos qüinqüenais - todos os continentes foram atingidos, aumentando ainda mais a miséria e o desemprego ao redor do mundo. A América Latina, por exemplo, teve que reduzir em 40% suas importações e sofreu uma queda de 17% em suas exportações.
É nesse contexto caótico que a Alemanha, no ocidente, e o Japão, no oriente, dominadas pela retórica hiper-nacionalista, tentaram explorar o debilitamento de seus rivais, todos grandes impérios coloniais. Uma nova luta por mercados e novas fontes de matérias-primas levaria o mundo à Segunda Guerra Mundial.
Causas políticas
A conjuntura externa caótica, e a situação interna de desespero, conduzem Hitler ao poder na Alemanha em janeiro de 1933. Atuando implacavelmente, em menos de um ano sufocou todos os movimentos oposicionistas (sociais-democratas, comunistas e liberais), dando inicio à Revolução Nacional-Socialista, que tinha como objetivo fazer a Alemanha retornar ao grau de potência europeia.
Naturalmente que para tal era necessário romper com o tratado de Versalhes, pois este impedia a conquista do "espaço vital" como o rearmamento. Atenuava-se o desemprego e atendiam-se necessidades da poderosa burguesia financeira e industrial da Alemanha.
Para evitar a má vontade das potências ocidentais, Hitler colocou-se como campeão do anticomunismo em nível mundial, assinou com o Japão, em novembro de 1936, e com a Itália, em janeiro de 1937, o Pacto Anti-Comintern, cujo objetivo era ampliar o isolamento da URSS e, quando for possível, invadi-la.
O Japão, que igualmente passou por convulsões internas graves, deu inicio, em 1931, a uma política externa agressiva, explorando o enfraquecimento dos Impérios Coloniais europeus que se mostram impotentes para superar a crise econômica.
Em 1937, após ter ocupado a rica região da Manchúria, invade o resto do território chinês, começando deste modo o longo conflito na Ásia. Seu expansionismo vai terminar por chocar-se com os interesses americanos nas Filipinas, e levar à guerra contra os EUA.
A Polônia destruída
Às 4h40 da madrugada do dia 1º de setembro, uma colossal força de guerra alemã, partindo de três pontos da fronteira polonesa, rumou rapidamente para a região central do país.
Ela obedecia ao comunicado expresso por Hitler um dia antes que afirmava: "por ordem do Führer e do Supremo Comando da Wehrmacht, as forças armadas alemãs assumiram a defesa ativa do Reich. Dando cumprimento à sua missão de resistir à ameaça polonesa, tropas do exército alemão lançaram, hoje cedo, um contra-ataque. Simultaneamente, esquadrões da força aérea voam em direção à Polônia com a ordem de esmagar objetivos militares."
O governo polonês, do presidente Ienacy Móscicki, havia disposto suas forças militares bem próximas à fronteira ocidental com a Alemanha, numa inútil tentativa de deter a máquina militar que se movia célere contra as defesas do seu país.
Divididos em dois grandes grupos - o do norte, com 630 mil soldados, e o do Sul, com 882 mil, ambos sob comando do general Walther Von Brauchitsch - e apoiados por 2,4 tanques distribuídos entre 14 divisões mecanizadas, e com o céu coberto pelos bombardeios convencionais e de pique que decolavam em massa dos aeroportos alemães, os exércitos invasores não tiveram muita dificuldade em cercar e aniquilar os poloneses dentro do espírito do que os altos-comandos germânicos chamavam de "vernichtungsgedanke", ou operação de aniquilação.
Quatro dias depois do ataque inicial, a guerra estava praticamente decidida. Os alemães registram 45 mil baixas (entre mortos, feridos e desaparecidos), menos de 3% das tropas usadas na Operação Fall Weiss.
No dia 27 de setembro, a capital Varsóvia negociou sua capitulação com o comando vencedor. As esperanças que os poloneses guardavam de receber algum tipo de apoio da Grã-Bretanha ou da França se esvaíram totalmente. Para cumulo da infelicidade deles, obediente à clausula secreta do Pacto Germano-Soviético de agosto de 1939, a URSS, vinda do Leste, também atacou a Polônia apenas 17 dias depois dela ter sido invadida pela Alemanha nazista.
Em menos de trinta dias, a república da Polônia deixara de existir, vítima da maior batalha de cerco e aniquilação até então conhecida na história moderna.
Por tudo isto, o mês de setembro de 1939 revelou-se uma data negra na história da humanidade, um momento infeliz que deu a largada para o destroçar de grande parte do patrimônio cultural e civilizatória das nações envolvidas pela guerra.
*Voltarie Schilling é historiador e escreve regularmente para o Terra na seção História do site de Educação.

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