domingo, 7 de março de 2010

O Dia em que Salvamos a Catedral de Chartres




Durante toda a longa treva da ocupação nazista, a população de Chartres—e de toda a França—esteve com a respiração suspensa, na esperança de que os alemães poupassem a portentosa Catedral de Chartres, uma das mais belas criações do homem.
De tempos a tempos circulava o rumor de que os alemães iam dinamitá-la—para castigarem a resistência francesa, ou, ao se retirarem, como um cruel gesto de vingança.
Afinal, em 16 de agosto de 1944, a grande catedral parecia definitivamente salva: o poderoso Terceiro Exército Americano, sob o comando do Gen. George Patton, achava-se nas cercanias de Chartres, os alemães recuavam e o templo permanecia intato.
Entretanto, justamente nesse dia a catedral esteve mais ameaçada do que nunca durante a guerra. Três canhões foram cuidadosamente assestados para ela, de perto, sob o comando de' um jovem tenente disposto a derrubar, pelo menos, as grandes torres—e esses canhões não eram alemães, eram norte-america-nos.
Na noite anterior, uns bons 80 quilómetros a oeste, três correspondentes de guerra 'norte-americanos, quase por acaso, tinham ficado interessados pelo destino da Catedral de Chartres. Clark Lee, Bob Reuben e eu tínhamos estado, com uma porção de outros, no quartel-general do Terceiro Exército, olhando o mapa que indicava o aprofundamento dos avanços de Patton através do solo francês. Todos os outros só tinham olhos para o grande obje-tivo—Paris—mas Clark Lee pôs o dedo num ponto entre Paris e o lugar em que nos encontrávamos e disse:
—Chartres fica aqui. Que terá acontecido à catedral?
Quanto mais falávamos a respeito, mais grave nos parecia a. indagação de Lee. Não tinha o historiador Henry Adams qualificado Chartres como a mais bela catedral gótica do mundo? Foi construída no século XIII, num estranho surto de simultânea devoção de ricos e pobres, no local de uma igreja anterior parcialmente destruída pelo fogo. A Notre-Dame de Chartres fora dedicada à Virgem Maria, e nela havia um relicário onde se acreditava estar o véu que Maria usava quando o Anjo Gabriel lhe anunciou que" ela seria a mãe de Jesus. As esculturas eram de incrível beleza, seus vitrais eram talvez os mais belos do mundo.
—Esperemos que os alemães não a danifiquem—disse-nos um coronel.
—É claro que nós tampouco o faremos, a não ser que se torne absolutamente necessário. Em tais casos estamos seguindo ao pé da letra as determinações de Eisenhower.
O Gen. Dwight D. Eisenhower dera ordens às tropas aliadas para se esforçarem ao máximo a fim de poupar qualquer monumento histórico. As tropas não deviam fazer fogo sobre tais pontos senão quando o comandante tivesse certeza de que o inimigo os utilizava para obter vantagem militar. Mas só em raros casos, no auge da refrega, um comandante pode ter certeza do que se passa em terreno ocupado pelo inimigo. Se seus homens estão sendo mortos por certeiro fogo de artilharia, o mais provável é colocar sob grande suspeita qualquer posição elevada de onde um observador bem localizado possa orientar o canho-neio. E, em terreno plano, o ponto mais alto é provavelmente uma torre de igreja. Poucos meses antes, alguns comandantes aliados na Itália, mal servidos por uma espionagem deficiente, haviam chegado à conclusão de que os alemães deviam estar fazendo uso, como um forte reduto, de uma antiga abadia em Monte Cassino, no topo de uma colina que dominava a passagem das forças em avanço. Depois que os bombardeiros aliados arrasaram a abadia foi que se verificou que a informação não era verdadeira.
Algo semelhante poderia ocorrer em relação a Chartres, cujas torres se elevam uns 105 metros acima do chão plano em redor. Decidimos os três ir ver com nossos próprios olhos. Cedo, na manhã seguinte —16 de agosto—partimos para lá, de jipe. Ao sairmos de um bosque, em campo aberto, Lee gritou: "Lá está ela!" Na linha do horizonte, a enorme catedral dominava a planície de Beauce, como uma nave em mar calmo. Pouco depois do meio-dia chegamos aos limites da cidade, e em poucos minutos já estávamos cercados por uma multidão de franceses exultantes.
Foi quando dei por mim. Nem Lee nem Reuben falavam francês, mas eu, sim ... a meu modo. Minha pronúncia era má, e os franceses não podiam deixar de sorrir diante sdos estragos que eu fazia na língua deles. Mas a boa vontade ajudava-os a adivinhar o que eu tentava dizer, e eu, se falavam devagar e de frente para mim, entendia mais ou menos o que eles estavam dizendo. Assim, do charlar dos satisfeitos habitantes da cidade extraí as nossas primeiras notícias fidedignas sobre a catedral.
—Mais oui!- -gritava um camarada bigodudo, que tinha ar de pirata e era apenas farmacêutico.—Tout va bien! Nem uma só pedra foi tocada.
Os outros assentiam satisfeitos. Podia-se deduzir que, para cada um deles, a sua querida catedral era pouco menos amada do que a própria família e o próprio lar. O farmacêutico saltou para o nosso jipe.
-Allons! Vou mostrar-lhes um atalho para a catedral.
Ouviu-se uma explosão forte a alguns quarteirões, e ele explicou:
—São obuses dos boches. A toda hora estão caindo, aqui e ali. Parece que não têm alvo nenhum; é só para assustar a gente.
Logo chegamos à catedral. Estava aberta, e um sacristão nos recebeu como se fôssemos anjos salvadores. O interior da catedral era escuro, uma obscuridade pacífica e luzente. Embora os preciosos vitrais tivessem sido retirados como medida de segurança, tudo parecia em ordem no velho santuário. O sacristão queria mostrar-nos tudo, mas isso levaria algumas horas e dissemos-lhe que voltaríamos à tarde. Nosso principal interesse fora satisfeito, e no momento estávamos pensando num assunto menos artístico: almoço. Lee sugeriu:
-Vamos procurar o melhor hotel da cidade. Com guerra ou sem guerra, um bom hotel sempre dá um jeito!
A proprietária, mulher de meia-idade, que demonstrava grande prazer em cozinhar, recebeu-nos quase em êxtase. Foi num instante a um armário e reapareceu com uma garrafa de uísque escocês, que havia escondido dos boches e jurara beber com os primeiros aliados a libertarem a cidade. Depois de vários meses, aquele foi o melhor almoço que tivemos- ovos frescos, salada e chouriço. Mas, no meio da despreocupada festa, entrou correndo um francês ofegante.
-Os americanos- -disse quase soluçando—vão bombardear a catedral!
Saltamos para fora pela janela baixa para chegar ao jipe o mais depressa possível. Uma grande praça, a poucas centenas de metros da catedral, estava repleta de franceses estranhamente silenciosos. Manti-nham-se a respeitosa distância do lugar para onde convergiam todos os olhares- -três veículos blindados, armados de canhões de cano curto para bombardeio a pouca distância. Os canos estavam assestados para as torres da catedral.
Intrigados, fomos abrindo caminho através da multidão, até alcançarmos o jovem tenente da Sétima Divisão Blindada, que comandava os canhões. Falando com ele energicamente- mas sem resultado—estava um francês pálido, fardado de major (depois soubemos que era oficial da reserva e tinha usado o uniforme para o grande dia). Logo se tornou evidente que o major não sabia uma palavra de inglês, e que o norte-americano não entendia uma palavra de francês.
Perguntei ao tenente o que estava acontecendo. Ele indicou a catedral :
—Os alemães devem ter deixado alguns observadores de artilharia lá em cima. Vamos desentocá-los.
Como sabia ele que havia observadores alemães na catedral ?
-Tem de haver -esclareceu ele.
-Não está ouvindo os obuses que caem ? Isso quer dizer que eles têm um ponto de observação pelas redondezas, e aquelas torres são o lugar evidente.
O major francês interrompeu ansioso:
-Algum dos senhores fala francês?
Eu respondi, e estava sendo modesto, porém falava a verdade:
—Un peu.
Diga a ele, pelo amor de Deus, que eu próprio, sendo militar, calculei muito bem que os norte-americanos iriam desconfiar da catedral, e então montamos guarda nestes três últimos dias. Posso garantir que não existe alemão nenhum na catedral, e, portanto, não há necessidade de bombardeá-la!
Traduzi para o tenente, mas ele não se deixou convencer.
—Ora!—exclamou com enfado.— Eu não confio nesse cara!
Embora não pudesse entender-lhe as palavras, a atitude do tenente foi claríssima para o major, que se voltou para nós, suplicante:
—Mais, messieurs, os senhores com certeza estão vendo que não há nenhum fogo de artilharia observada!
Sem nos dar a menor importância, o tenente deu ordem aos seus homens para carregarem e apontarem. Da multidão ansiosa saiu um gemido abafado, e o major francês disse-me desesperadamenje:
—Diga a ele que eu só peço 20 minutos, apenas 20 minutos, para levar uma patrulha até ao alto das torres e provar-lhe assim que os alemães não estão lá! Ele pode mandar alguns de seus homens comigo.
A proposta parecia razoável, mas, quando acabei de transmiti-la, o tenente olhou-nos com raiva:
—Por que diabo vocês estão-se metendo? Vocês são civis. O que eu faço não é da conta de vocês!
Ele tinha toda a razão. Nossos uniformes e nossas patentes de oficiais "agregados" não nos outorgava a mínima parcela de autoridade. Mas ainda assim, bem ou mal, o caso parecia exigir o desprezo de formalismos. Respondi-lhe que era da nossa conta, sim, e lembrei as determinações expressas de Eisenhower, para tais emergências, de não se fazer fogo contra os monumentos a não ser que se tivesse certeza de que o inimigo os estivesse utilizando contra nós. E prossegui:
—Neste caso não há prova alguma de que o inimigo está fazendo uso da catedral, e tudo parece indicar que não ,está. Mesmo que não acredite na história deste francês, o senhor devia saber que isto não é fogo observado. Está caindo ao acaso. Não atingiu um único soldado ou veículo norte-americano. Está atingindo e matando franceses; entretanto, são os franceses que insistem em que não há nenhum alemão orientando o fogo. Por que não deixa o major francês esclarecer a questão de uma vez por todas, e não lhe dá 20 minutos para ir lá em cima com uma patrulha?
Ele nem respondeu. Então joguei q meu trunfo -deslealmente talvez, mas achei que havia muita coisa importante em jogo.
—Bem, tenente, nós vamos tomar nota do seu nome, e temos excelentes testemunhas. Se o senhor danificar a catedral, e se ficar demonstrado depois, como estamos certos, que não havia nenhum alemão lá em cima, o mundo inteiro ficará sabendo quem foi o maníaco que destruiu a catedral . . . desnecessariamente. Além disso, eu irei pessoalmente levar o seu nome ao General Eisenhower, e posso garantir que o senhor vai ser o tenente mais arrependido do Exército Norte-Americano.
Não era um blefe: eu passara vários dias entrevistando Êisenhower e tinha uma certa liberdade para falar com ele, e a usaria nesse caso.
Vermelho de raiva, o tenente disse asperamente:
—Está certo. Vinte minutos, não mais. Ficarei daqui olhando e esperando.
Quando traduzi as palavras do tenente, um suspiro de alívio percorreu a multidão e a fisionomia do major francês iluminou-se. Ele e vários de seus homens amontoaram-se no jipe e corremos para a catedral, cujo interior eles conheciam palmo a palmo. Dividimo-nos em dois grupos, um para cada torre, e nós, americanos, fomos guiados pelo próprio major francês.
Subimos uma estreita e interminável escada em caracol, e depois de algum tempo estávamos arquejantes e sem ar. De quando em quando havia janelas como frestas, e nós parávamos em cada uma delas, em parte'para tomar fôlego e em parte para acenar indicando que até ali não tínhamos encontrado alemães. Lá embaixo, na praça, podíamos ver os três canhões do tenente, ainda apontados para as torres.
Afinal chegamos ao ponto mais alto a que se podia subir e paramos sobre o tosco chão de madeira bem debaixo dos grandes sinos. O major tinha razão: não havia ninguém ali, nem na outra torre. Ele nos abraçou enternecido e nós agitamos os nossos casacos para mostrar a todo o mundo lá embaixo- especialmente ao tenente—que não havia perigo na catedral.
Olhei os sinos enormes, perguntando a mim mesmo quanto tempo teriam ficado silenciosos, e achei que era hora de tocá-los. Agarrei o pesado badalo do maior deles com ambas as mãos e balancei-o com força contra o grande sino de bronze. Bati três vezes em rápida sucessão, e uma quarta, que ficou vibrando: dom-dom-dom-do-o-o-m-m. Três toques curtos e um longo. O V da vitória. Um grande vozerio de alegria subiu da multidão de franceses reunida na praça e chegou até nós.
Descemos mais devagar. De uma das estreitas janelas notamos que o tenente havia desaparecido com seus canhões. Quando saímos do escuro da catedral, piscando à luz do Sol forte, fomos quase esmagados pelos felizes chartrenses. A dona do nosso hotel estava lá também, e veio correndo para nós, gritando, lágrimas nos olhos:
—Nunca nos esqueceremos de vocês! Vocês salvaram nossa catedral! Vou acender uma vela . . . não, três velas: uma para cada um!
Da próxima vez que eu estiver em Chartres, pedirei a ela que acenda outras velas—mais duas, desta vez— pois Clark Lee e Bob Reuben morreram depois disso, e se alguém tiver de acender em algum lugar uma vela para eles, esse lugar deverá sem dúvida ser a "nossa" catedral.




Texto extraído da Revista Seleções do Reader's Digest de Dezembro de 1965

About this blog

Seguidores