segunda-feira, 16 de março de 2009

Estabeleça Contacto Com os Russos




Foi pouco antes do Dia da Vitória na Europa que se produziu um dos episódios mais fantásticos de toda esta guerra: quando um jovem tenente na 7ª Divisão Blindada do Exército Americano recebeu ordem de avançar com a sua força de reconhecimento para além das linhas americanas, afim de estabelecer ligação com as tropas russas, que avançavam em sentido oposto. Nunca o oficial, recem-saido da Escola Militar de West Point, teria adivinhado que, com menos de 100 homens sob as suas ordens, poderia galgar mais de 95 quilometros de território inimigo, rompendo caminho através de toda a zona por onde, estava espalhado o 12° Exército Alemão.

Cortadas as comunicações com o seu comando, e avançando à toa porque não ousava dar parte de fraco retrocedendo, o Capitão Knowlton perpetrou a façanha de desarmar muitos milhares de soldados inimigos, e forçar a rendição de diversas cidades alemãs.
A sua fluente e ágil narrativa, extraída duma longa carta à esposa (que naturalmente se não destinava a publicação), está recheada de drama, de situações empolgantes, de humorismo tipicamente ianque, e culmina no encontro cordial e vociferante com os nossos aliados russos.

Os oficiais que acompanhavam Knowlton nesta expedição eram os seguintes: Ten. William Sullivan (Sully), Ten. Earl Hairell, Ten. Harry Clarke Ten. Henry Temple.


 
"ESTABELEÇA CONTACTO COM OS RUSSOS!"


Eu estava ativo, na tarefa de organizar as escoltas para os grupos de prisioneiros alemães, e tinha mesmo  acabado de mandar os meus pelotões lá bem para a retaguarda, onde ficavam fora de alcance das ordens pelo rádio, quando o Sully chegou-se a mim, dizendo: «Olhe, Bill, o coronel Woody anda procurando você pra lhe falar. Vá a Ludwigslust agora mesmo; eles têm outra missão pra você.» Soltei uma praga entre dentes: toda aquela noite tínhamos andado em marchas e contramarchas, atravessando o Elba debaixo de vento e duma chuvinha gelada que vinham lá de cima do Báltico, e desde o amanhecer eu estivera em missão de reconhecimento na vanguarda da coluna mista que acabava de tomar Ludwigslust, nas terras baixas a noroeste de Berlim. Mas dei instruções imediatas para que meus pelotões largassem logo o que estavam fazendo, e se concentrassem sem demora em Ludwigslust. Abri a sirene do meu carro de assalto, carreguei no acelerador até o fundo, e abalei estrada abaixo a 70 à hora. Quem havia de dizer que aquela ordem para me apresentar em Ludwigslust se ia tornar o momento supremo da minha carreira militar!
Os prisioneiros alemães, ainda fardados, eram mais que praga em Ludwigslust. Mal se podia andar nas ruas, de apinhadas que estavam. Mas afinal consegui descobrir o comando da nossa divisão. O coronel, assim que me viu, correu logo a dizer-me: «Knowlton, esta cidade é o ponto mais avançado que estamos autorizados a ocupar. As nossas tropas, neste momento, estão desdobradas numa linha norte-sul logo aí fora da cidade.
«O que eu quero que você faça é o seguinte: pegue nos seus homens, e vá estabelecer contacto com os russos. Eles estão para leste, entre 8o e 16o quilómetros daqui, segundo as notícias que nos chegam. Peca-lhes que mandem alguém do estado-maior deles para acompanhar você até aqui.
«Entre este ponto e os russos, você vai encontrar todo o 12º exército alemão,» continuou o coronel. «Se você cair nalguma encrenca, safe-se o melhor que puder e não espere socorro, que não podemos mandar. Veja em todo caso se não se compromete demais, e vá dando notícia dos seus progressos. E com isso, muito boa sorte!»
Estendeu-me a mão, coisa que me sensibilizou e, ao mesmo tempo, me deixou algo apreensivo: porque no exército a gente só aperta a mão a alguém que não espera mesmo tornar a ver senão muito mais tarde, e eu não gostei nada dessa ideia.
Para não perder tempo e fazer melhoi velocidade, resolvi deixar para trás a minha artilharia de assalto. O pelotão do Harrell estava por fora, em outra missão, de modo que larguei levando comigo apenas dois pelotões, menos uma seção, e três carros blindados de comando. Pus o carro do Clark à cabeça da coluna, depois alguns pequenos jipes, o meu carro, outros jipes, Sully, e por fim o que restava do primeiro e do terceiro pelotão. Ao todo, devíamos ser uns 65 homens, não mais.
Examinando o mapa, cheguei à conclusão de que tinha dois caminhos a seguir: ou me insinuava pelas estradas secundárias, assumindo o risco de me ver atacado e ter que responder, ou rompia em linha reta pela estrada principal, como se levasse um exército atrás de mim, e nesse caso talvez ninguém ousasse hostilizar-me. Resolvi meter a toda a velocidade pela estrada principal, e tocamos.
Era a minha primeira ação importante desta guerra, e meu coração pulava de contentamento à medida que nos enfronhávamos pela estrada. Mas também, confesso, batia um pouco de inquietação, porque aquele negócio bem que podia virar encrenca das peores, como de fato se veio a ver depois.
Daí a pouco tempo atravessávamos as nossas linhas avançadas. Passadas elas, a estrada apresentava-se atulhada de soldados alemães que «retiravam» para a zona americana. Vinham quase todos embriagados, e ao ver-nos desatavam aos berros e jogavam o armamento no chão. Isto nos dava uma ideia bem clara da situação, e aceleramos a marcha. A multidão dos retirantes alemães foi rareando, rareando, e daí a pouco, entre um grupo e outro grupo, começamos a percorrer trechos de estrada completamente desimpedidos. Produzia-se então um momento de tensão: os alemães apontavam as armas contra nós, depois detinham-se, como que perplexos de nos verem sentados a descoberto no alto das torrinhas dos nossos carros, sem pormos mão das armas; por fim, decidiam que, para nos comportarmos assim, é porque devíamos vir segui-• dos duma força medonha, e não valia a pena hostilizar-nos: largavam as armas!
Rodamos assim uns dez quilómetros, e chegamos a Neustadt, cujas ruas estavam tão apinhadas de paisanos e militares, que até parecia uma festa. O povaréu cantava, e, quando nos avistavam, os soldados riam-se e acenavam com as mãos, erguendo no ar as suas armas para nós vermos, e em seguida jogavam-nas fora... Parecia uma coisa contagiosa: tão depressa um soldado sacudia em terra as suas armas, todos desatavam a imitá-lo freneticamente.
Levou-nos quase duas horas para atravessar Neustadt, e não houve remédio senão assumirmos finalmente a direção do tráfego: aproximei-me dum tenente das tropas de elite (SS, ou seja, Schutz-Staffel), e ordenei-lhe que organizasse uma força de polícia de trânsito, com os soldados da sua arma que se encontrassem na cidade. Valia bem a pena ter pago o preço do ingresso, só para ver as caras dos soldados alemães, à medida que eles iam entrando na cidade para encontrarem o tráfego dirigido por americanos e soldados SS, de colaboração. Foi uma cena digna do circo!
Passada aquela cidade, a estrada entrava por um pinheiral cerrado. Achamo-nos ali detidos por um dédalo de caminhões alemães empanados de víveres e roupas. Comecei a sentir-me um pouco preocupado. Víamos sair da floresta numerosos soldados SS que, depois de terem obtido os seus víveres, voltavam a meter-se por entre o arvoredo. Donde estávamos, na estrada, podiam-se ver as suas metralhadoras assestadas. Achei que aquele pessoal tinha cara de poucos amigos... Então chamei-os, e disse-lhes que saissem do pinheiral e viessem cá para a estrada: pararam, ficaram olhando em volta, alarmados, e dispararam a correr para as suas metralhadoras. Pareceu-me que estávamos fritos: mas ao mesmo tempo eu não queria abrir fogo, para não atrair em cima de nós toda a cambada que andasse naquela zona. Deixamo-nos pois ficar sentados no alto de nossos carros, e continuamos a berrar para os SS, como se não pudéssemos compreender que alguém ousasse resistir a uma força tão nutrida como a que vinha atrás de nós. O truque deu resultado: os SS foram saindo da floresta, e depondo as armas.
Mas estas eram tantas, que nós não tínhamos maneira de destruí-las todas. Acabamos tirando apenas as pistolas aos «prisioneiros», e ordenamos que marchassem 15 quilómetros na outra direção, donde vínhamos, para fazerem entrega de todo o seu armamento aos americanos que deviam encontrar ali. Prometi-lhes que a força tremenda que nos seguia não atiraria neles; alem disso, acrescentei, essas tropas deviam estar tão perfeitamente camufladas, que os retirantes não dariam pela presença delas senão quando chegassem, bem à retaguarda, lá para Ludwigslust. Estou certo de que menti mais nesse dia do que em toda a minha vida passada!
Continuamos atravessando a floresta e, finda ela, nos metemos através de grandes espaços abertos. De repente olhei por acaso para o lado, e meu coração ficou do tamanho dum feijão: no nosso flanco, a menos de mil metros de distância, avistei uma bateria de quatro canhões anti-tan-ques, os maiores que até então tinha contemplado! Compreendi imediatamente que os meus camaradas não tin-ham dado por aquele perigo, e fiquei sentado ,na torrinha do carro, com tanta naturalidade como se tudo estivesse correndo no melhor dos mundos possiveis. Os quatro canhões foram-se movendo até ficarem assestados sobre a nossa coluna, e daí em diante as suas goelas ameaçadoras continuaram a acompanhar nossa marcha. Senti a garganta seca como palha, e o estômago, já apertado com frio, ainda se apertou mais. Acho que comecei a rezar pela salvação da minha alma, mas nem tenho bem a certeza. Não me lembro de nada, senão das goelas daqueles canhões nos acompanhando, assestadas sobre nós. E nisto, eles pararam, e eu vi surgir quatro cabeças sobre o parapeito: eram quatro alemães que nos ficaram olhando com muita atenção durante alguns instantes. Mas eu não estava ligando... Outras cabeças mais foram surgindo, até que por fim saíram bem 45 homens do reduto, e conforme iam saindo iam jogando fora as armas!
E a jornada continuou, sempre assim nesse tom. Chegávamos ao alcance dum bando de alemães, estes apontavam-nos as armas, nós berrávamos para eles que as depusessem, eles obedeciam—e nós seguíamos nosso caminho, triunfantes. Encontramos de passagem uma porção de tanques—«Tigres», «Panteras», tinha de tudo—e canhões de assalto, com suas guarnições inteirinhas. Depois de termos suado ao enfrentar esses tanques do diabo durante a campanha do bolsão do Rur, até parecia que estávamos agora nos bastidores do teatro da guerra, vendo como é que os alemães faziam mexer toda aquela carpintaria. Limitamo-nos a arrancar os pinos das culatras dos canhões, e deixamos os alemães seguir seu caminho.
Era realmente um espetáculo digno de ver: milhares e milhares de alemães jogando fora as armas, aos batalhões e aos regimentos inteiros! A certa altura um coronel inimigo encaminhou-se para mim ao longo da nossa coluna, fitou-me com insolência, e ordenou aos seus soldados que parassem de arremessar as armas no chão. Um soldado que estava ao lado, com uma bazuca nos braços e pronto a largá-la em terra, ao ouvir os berros do coronel, deteve-se e pôs-se a olhar para mim com uma expressão interrogativa. Outros soldados ficaram também parados, espiando a cena. Senti que estava em foco, e fiquei tenso. Não fiz mais nada: pulei do carro abaixo, fui-me ao coronel e, espalmando a mão na fuça dele, dei-lhe um valente empurrão. Depois virei-me para o soldado, que ainda estava de bazuca nos braços, e ordenei-lhe que a jogasse fora: ele ainda hesitou, mas eu dei-lhe dois berros num tom de voz que não consentia mais dúvidas. Então ele mostrou a dentuça num sorriso alvar, e lá foi a bazuca parar no chão. Voltando-me de novo para o coronel, disse-lhe certas verdades: afinal, quem é que ele pensava que estava agora comandando o regimento: ele—ou eu? Parece que era eu. E assim continuamos.
Cidade mesmo desgraçada como eu nunca julguei possível, foi Parchim. Alguém se lembrara de telefonar para ali que estava chegando o «exército americano», de tal sorte que quando minha pequena força deu entrada na cidade, havia dois soldados de polícia militar a cada esquina, para nos ensinar o caminho direito. Estava tudo preparado para assistir à nossa passagem, com as tropas SS contendo em respeito a multidão alvoroçada, que se apinhava nos passeios, para deixar a calçada desobstruída. Os soldados alemães, a seis de fundo, formavam alas todo o caminho, através da cidade, aclamando-nos com vigor. Alguém lhes tinha dado a entender, com certeza, que estávamos em marcha contra as tropas russas...
Chegamos por fim a Lübz, onde eu peguei o susto maior de toda a minha vida. Tínhamos acabado de tentar falar pelo rádio com o nosso comando, e verificamos que estava fora de nosso alcance. As comunicações cortadas! E ali estávamos nós, 65 homens a 6o e tantos quilômetros dentro das linhas alemãs, em pleno seio do 12º exército alemão, e sem um vislumbre sequer de escapar com vida se o inimigo resolvesse que devíamos deixar a pele lá. Foi em Lübz que encontramos alguns dos autênticos guerreiros da Wehrmacht, entre eles muitos soldados da SS, sentados em cima de tanques monstros e de canhões de campanha, todos de cara dura, sujos e barbados, e de armas aperradas em cima da gente. Eram soldados de meter respeito, e podia-se ver logo que não gostavam mesmo nada de nós.
Encontrei pela frente um colosso dum general, viajando num auto de estado-maior, em meio a numerosa escolta de tropas SS em motocicleta. Era imperioso que eu me resolvesse a fazer alguma coisa, pois do contrário estávamos fyaput— fritos. Dirigi meu carro de assalto para o auto dele, e postei-me mesmo em frente, barrando-lhe a passagem; como quem não quer, inclinei-me para fora, desviando com a mão o cano duma das pistolas-metralhadoras dos SS assestadas contra mim, e perguntei: «Wo gehen Sie, Herr General?» (Para onde é que o sr. vai, general ?)
Ele virou para mim uma cara que a raiva tornara apoplética, por eu haver ousado obstruir-lhe o caminho, e redarguiu: —Não entendo o que você quer dizer! Arrede do meu caminho!
—Onde é que você vai, compadre? teimei eu. —Eu só arredo daqui quando você me disser para onde vai!
—Vou para Parchim! bradou o general, fora de si.
—Está bem, respondi. —Ao menos agora eu já fico sabendo. Chofer, arrede-se para deixar passar o general! Abrimos passagem, e o general saiu disparado, entre uma nuvem de poeira e de soldados SS. Fiquei sabendo então quem ele era: nada menos que o comandante de corpo daquele setor! Mas a isso voltarei mais adiante.
A essas alturas eu já estava com ótima disposição, e quando tornei a ver o Sully quase que desatei a rir. Estava em plena encruzilhada um polícia militar alemão, esforçando-se freneticamente por dirigir o trânsito para leste; o Sully foi por trás dele sem ser notado, deu-lhe uma palmada no ombro, e o policial virou-se um pouco para lhe dizer que esperasse um momento. Foi uma autêntica piada de cinema! O polícia tornou a dirigir o trânsito, mas no mesmo instante percebeu que o oficial atrás dele não era alemão, e fez meia-volta volver, de boca aberta e queixo caído. O Sully agarrou-o pelos ombros, obrigou-o a dar outra volta, e pô-lo a dirigir o tráfico de leste para oeste...
Daí a poucos minutos o Harrell, que ficara para trás, reunia-se a nós. Foi então que um SS se dirigiu a mim, perguntando o que é que os americanos estavam fazendo ali. Respondi que éramos apenas a guarda-avançada duma grande força, e perguntei onde se encontravam os russos: a uns 50 quilómetros para leste, esclareceu ele. De maneira que tínhamos vencido 50 quilómetros de território inimigo, numa correria, para chegarmos a Liibz, e ainda ali estávamos a uma distância enorme dos russos, com quem tínhamos de entrar em contacto!
Tentei novamente estabelecer comunicação com o meu comando, mas sem melhor sorte ainda desta vez. Agora já os SS em massa rodeavam o meu carro, e numa atitude de aberta hostilidade. Qualquer indecisão da nossa parte poderia redundar em sérias dificuldades para a coluna e a sua missão.
Mais uma vez havia dois caminhos a seguir: podíamos continuar para a frente até dar com os russos—mas'estava escurecendo, e levantava-se com a noite o espinhoso problema da nossa identificação; o sinal era um foguetão de certo tipo, que não trazíamos conosco; quanto aos emblemas dos carros, a noite os tornaria invisiveis. Ainda acresce que, ao apro-ximarmo-nos das linhas russo-alemãs, era de esperar que os alemães atirassem contra nós. Ou, na segunda hipótese, podíamos dar meia-volta e arrepiar caminho: mas se nos mostrássemos indecisos, «o ponto de voltar para trás, podíamo-nos considerar mortos e enterrados. Tal era a sentença que se lia nos olhos daqueles soldados de elite que nos rodeavam. Ainda nos restava uma derradeira solu-.ção: era deixar-nos ficar em Liibz suando de inquietação uma noite inteira.
A artilharia alemã continuava passando pôr nós, e os seus canhões eram cada vez maiores; os tanques enchiam o ar noturno com o rumor do aço entrechocado, ouviam-se as ríspidas vozes de comando dos oficiais alemães,—e tudo isso junto constituía um dos espetáculos mais imponentes, ao mesmo tempo que um dos mais aterradores a que eu tenho assistido.
Tomei ali mesmo uma resolução, e mandei chamar o Sully: «Sully,» disse eu, «leve nossa coluna para fora da cidade, suba nalgum morro, e veja se pode restabelecer as comunicações pelo rádio. Sargento Ladd, você vem comigo.» A coluna seguiu pois ao seu destino, enquanto eu e ò sargento Ladd começamos a muito custo rompendo caminho por entre as tropas alemãs.
Quando chegávamos ao centro da cidade, vi um major com uma barriga fenomenal, que vinha quase rebolando por uma calçada abaixo, ao meu encontro, acompanhado dum paisano pequeno e insignificante, que trotinava ao lado dele.
 
—Eu entrego a cidade! tartamudeou ele. —O general não está aqui, de modo que eu mesmo faço a rendição em nome dele.
—Eu sei, retorqui. —Eu acabo de falar com o general, que ia a caminho de Parchim.
—Ah, nesse caso dá tudo certo! disse o major. —O sr. falou então com o general Hernlein! Eu entrego a cidade. Este cavalheiro que me acompanha é o Bürgermeister daqui.
O Bürgermeister engrolou umas frases quase ininteligíveis, para dizer que tinha muito gosto em ver o exército americano (ao todo, o sargento Ladd mais eu), e puxou uma chapelada muito em forma. Sem fazer caso dele, empurrei-o para o lado e dirigí-me ao major em tom de rudeza. Eu estava tão fatigado que nem já via direito, mas esforcei-me por aparentar grosseria e espírito prático: —Preciso que me arranje imediatamente um posto de comando.
—E ali mesmo, disse o major. —Os SS têm um Centro de Controle do Trânsito aqui. Também já foi posto de comando da divisão, até que os generais retiraram.
—Então ponha os SS na rua, que eu quero a casa já, ordenei. Metemos a caminho pela cidade fora, e a população se debruçava das janelas para nos ver passar; enquanto os soldados, nas ruas, se acotovelavam para olhar a cara do novo comandante militar que passava. Eu marchava rua abaixo sem olhar para os lados, com o major e o burgomestre esbofados, trocando o passo atrás de mim.
O PC, onde antes fora um bar, estava apinhado de SS e de oficiais paraquedis-tas. Sentado diante duma mesa enorme, sobre a qual se desdobrava um mapa, avistei um coroneL Declarei logo peremptoriamente: «E ali que eu quero me sentar.» O coronel ergueu-se da cadeira com evidente relutância, e cedeu-me o lugar. Os outros oficiais ficaram em volta, a observar-me com um olhar frio como o aço.
Para não estragar o meu joguinho, vime forçado a proceder com rapidez. Ordenei imediatamente que todos os paisanos se recolhessem a suas casas. Quanto aos soldados alemães, esses podiam atravessar a cidade, sob a condição de deixarem as suas armas. Combinei com o burgomestre que a fábrica de cerveja seria transformada em depósito de armas rendidas.
A divisão «Hermann Goering» de Para-quedistas, que era uma das formações de elite do exército alemão, estava naquela mesma cidade. Aproveitei-me dos seus homens para organizar uma força de polícia militar, e dei-lhes instruções no sentido de manterem o trânsito em circulação de tal modo que tudo passasse pelos pontos de arrecadação das armas e que todos os soldados fizessem entrega das mesmas. Os homens tomaram o seu papel muito a peito, e daí a coisa de uma hora o trânsito corria como um veludo.
Autorizei os soldados, porem, a conservarem todos os tanques de grande modelo, visto que muitos deles andavam correndo nessas máquinas, e eu queria induzi-los a levar o maior número possível delas para o lado das linhas americanas. 
A essa hora já eu estava suando por todos os poros. O meu rádio-operador veio anunciar-me que tinha remetido a minha mensagem, e trazia-me a «resposta» por escrito. Desdobrei o papel e li estas palavras: «Não consigo fazer contacto com nenhuma estação. Estamos com as comunicações cortadas com todas as forças americanas.» «Obrigado, sargento,» disse eu depois de ler. «Diga a eles que eu darei cumprimento às ordens,e fico aqui esperando novas instruções.» O rádio-operador fez a continência e rodou nos calcanhares.
Virei-me então para os alemães e anunciei: «Acabo neste momento de receber ordem do meu comando para passar a noite aqui, e avançar logo de manhã ao encontro dos russos.»
A estas palavras levantou-se um coro de protestos enfurecidos; todos os alemães queriam saber porque é que eu não marchava nessa mesma noite para a frente. Aguentei esse negócio durante alguns instantes, e depois banquei o bravo, declarei que nós éramos soldados, e se o nosso general nos mandava esperar ali aquela noite, havíamos de esperar mesmo. Isso eles compreenderam bem.
Mandei então concentrar na praça principal da cidade todos os nossos veículos, que estavam espalhados por fora. Tomei disposições para que dois dos meus pelotões ficassem comigo no PC, instalados num corredor que havia no andar de cima. Os alemães queixaram-se de que aquilo ali era alojamento dos SS, mas eu pus os SS no olho da rua, e daí a pouco estávamos aquartelados.
Até então o meu dia tinha sido a maior teia de intrujices de toda a história. E o meu blefe ia dando resultados, só porque os alemães julgavam que eu era a personificação do exército dos Estados Unidos, e porque confiavam que onde eu estabelecesse contacto com. os russos, ficaria traçada a linha de demarcação das zonas de ocupação. Pelo meu lado eu sabia apenas que, se me visse em dificuldades, ninguém viria socorrer-me; e que todo aquele território ficaria nas mãos dos russos depois de finda a guerra.
Mal eu me tinha instalado quando o telefone começou a tocar: era o major alemão que ficara tomando conta da cidade de Parchim, e queria saber quando que os outros americanos chegavam. Tratava-me de «Herr Kommandant.» «Ah!» respondi eu, suando feito cavalo de corrida, «as nossas tropas não devem tardar. Uma porção de tanques e de infantaria. Se não entrarem aí esta noite, estão lá com certeza amanhã de manhã.»
A voz do major denunciava a sua preocupação: «E o sr. tem instruções para me dar?» insistiu ele.
Agarrei essa oportunidade, para redobrar a importância da sua missão: «Como não!» exclamei. «O senhor vai recolher as armas de todos os soldados alemães, para entregar às forças americanas logo que estas cheguem aí.»
O major deu berros no telefone, que nem águia a quem atacam os filhotes no ninho. Mas eu lhe cantei: «O que o sr. pensa, não importa. O comandante militar sou eu, e a minha ordem é—desarme todo o mundo!» E nisto ocorreu-me uma ideia genial: «E não se esqueça do Comando de Corpo que está aí, com o tal general Hernlein!» Dito isso, desliguei o telefone.
Entrou a seguir no meu gabinete um capitão da Divisão «Hermann Goering» de Paraquedistas, declarando que o seu general não acreditava na presença das tropas americanas em Lúbz, e por isso exigia como prova que ele lhe levasse um cigarro americano. «Seria o cúmulo— pensei eu—se eu desse um dos meus preciosos cigarros para alemão fumar!» Em vez do cigarro mandei-lhe por escrito a nota seguinte:

Serve a presente para certificar que nesta data as tropas americanas capturaram Lübz, na Alemanha.
William A. Knowlton 1º tenente de Cavalaria 
Comandante

E nas dobras desta nota pus um pedaço de chiclete...

Entrou então outro capitão, desta vez da Brigada Motorizada de Infantaria de Marinha, um tipo grandalhão e de génio avinagrado. Falava inglês muito bem, e começou a dar-me que fazer. Comandava um setor das linhas de defesa alemãs, a leste, e pôs-se a teimar comigo para que eu saísse imediatamente ao encontro dos russos. Declarei que só sairia quando estivesse pronto para sair, e que não ia agora expedir nenhum dos meus soldados no escuro da noite, só pelos belos olhos dele: nem de ninguém. Ele se esforçou por ser mais esperto do que eu, levando-me a dizer-lhe quais as ordens que eu recebera, e quantos soldados estavam sob o meu comando, isto ao mesmo tempo que o meu telefone tocava a cada instante, e uma voz familiar me dizia: «Herr Kommandant, as tropas americanas ainda não entraram em Parchim!»
«Descanse, que elas chegarão!» respondia eu com a testa escorrendo suor que parecia uma fonte.
Vou agora tentar resumir em breve quadro o que era o ambiente daquele PC, e a conversa de que eu fui o centro.
A cena representa uma espécie de cervejaria meio rebentada, cheia de jovens e robustos soldados alemães. Ao fundo vê-se um retrato de Adolfo Hitler sobreposto a uma secretária monstruosa, à qual está sentado, com cara de poucos amigos, o nosso personagem central. A única luz. é, praticamente, a dum foco que incide na secretária, dando à cena a aparência caraterística duma delegacia policial onde se prepara um desses interrogatórios acompanhados de cassetete. A blusa de campanha do personagem mostra-se rasgada e esfrangalhada pelos estilhaços de granadas, a sua cara está medonha de sujeira e cansaço, e com um restolho de barba de dois dias. Quando sobe o pano, o Capitão da Brigada Naval
está esmurrando a mesa para acentuar o
que fala.
Capitão: O sr. deve sair daqui esta mesma noite para se encontrar com os russos. Eles estão avançando aqui neste quarto (a palavra inglesa room, quarto, traduzindo literalmente o alemão Raum, que significa espaço), e o sr. deve ir ao encontro deles. Eles estão aqui. (Murros no mapa que está em cima da mesa) O sr. precisa ir esta noite mesmo!
Knowlton: Não venha me dizer o que é que eu devo fazer! As ordens que eu tenho são estas: ficar aqui e encontrar-me aqui com eles.
Capitão: O sr. não está em contacto com o seu comando!
Knowlton: Ora essa! Claro que estou! A ordem é esperar aqui.
Sapador: Herr Kommandant, eu acabo de plantar um campo de minas aqui às portas da cidade, por ordem do meu general. Posso recolher agora a minha força à sede da companhia ?
Knowlton: Não pode não senhor! Vá lá fora já e desenterre todas as minas! Aqui tem um passe, para que as outras tropas americanas não o molestem. (Tropas estas imaginárias, claro está.)
Sapador: Mas o meu general me deu ordem para...
Knowlton: Mexa-se e desenterre essas minas já!
Capitão: O russo não avança esta noite, porque deve estar abusando das nossas lindas moças alemãs. Nossas adoráveis moças vão ser violadas!
Knowlton: Ora, isso é propaganda!
Cabo alemão: Herr Oberleutnant, estes homens aqui desejam verificar a lâmpada por cima de sua cabeça, «para eletricidade funcionar fazer!» (telefone toca)
Knowlton: (No fone) Já estão chegando. (Para o capitão) Não vou a parte nenhuma esta noite. (Aos operários) Dê já o fora, não vê que está pisando no meu pescoço ?
Cabo: Dá licença, capitão ? O burgomes-tre deseja saber se pode ir para casa, ele quer dormir.
Capitão: O sr. verá, quando tiver que se bater nas margens dos rios da Polónia—quando os russos estiverem fartos de abusar das nossas lindas moças alemãs! O sr. precisa sair esta noite.
Soldado americano: (entrando acompanhado dum soldado SS, que se debate) Seu capitão, este alemão patife tentou me balear.
Soldado SS: Dieses verdamnte amerika-nische Schwein... (repica o fone)
Telefone: Herr Kommandant, as tropas americanas ainda não chegaram em Parchim, e o Herr General deu ordem para que todas as tropas voltem a pegar em armas e regressem à frente. Quando é que os outros americanos vão chegar ?
Soldado americano: Cale essa boca, seu kraut; senão eu te quebro a dentadura!
Major alemão: Herr Kommandant, a fábrica de cerveja já está atulhada de armas. Opde é que os soldados devem passar agora a entregar o armamento? (Estoura lá fora uma salva de obuses soviéticos)
Capitão: Ouviu ? ouviu ? Aí estão eles, os
russos estão chegando! O sr. deve sair já ao encontro deles neste  «quarto»!, (room: Raum) Mande  levantar seus homens já!
Knowlton: Isso mesmo, o burgomestre que vá para casa. Justamente, as nossas 'tropas não tardam nada. Encontre outra fábrica para guardar as armas! Tira as patas de meu pescoço, bandido! Ponham esse Biirgermeister no olho da rua, que ele já está me enfezando! De que lado é que os russos estão disparando? Não senhor, eu não saio daqui esta noite com patrulha nenhuma!
E assim, até mais não poder.
Isso durou horas e horas, até eu me sentir completamente esgotado. Lembre-se de que havia dois dias e duas noites que eu não pegava olho! O golpe final caiu em cima de mim quando esse mesmo capitão da Brigada Naval se inclinou sobre a minha mesa, batendo com o punho no mapa, e bradou: «Na minha opinião, tudo isto é tapeação sua! Primeiro, garanto que v. não está mais em contacto com o seu comando; e segundo, aposto que não há tropa americana daqui até Ludwigslust, e que não estão chegando mais soldados americanos! Que me diz ?»
Pesou sobre a sala um súbito silêncio de morte—e olhos, só olhos implacáveis me fitando, trespassando-me até o íntimo dos pensamentos. E nesse silêncio os rumores lá de fora cresceram, avolumaram. Ouvi o ranger sinistro das esteiras de tanques, o arfar dos motores de caminhão, as canções dos soldados SS que o vento cortante e frio trazia aos meus ouvidos com maior nitidez, o craque-craque dos sapatos ferrados, as rudes vozes de comando dos oficiais alemães.
Senti que ia perder o equilíbrio interior, e disse com os meus botões: «Knowlton, você foi muito burro em pensar que seria capaz de continuar com esta farsa, e sair ileso. Aqui mesmo por cima da sua cabeça estão dormindo 6o homens que confiaram em você, e que você conduziu a esta ratoeira de morte. Esta é a última cartada que você vai jogar, e é bom que a jogue direitinho. Você teve sempre a vaidade de se julgar bom ator... Vamos a ver agora que tal representa! Olhe que é a sua última cartada!»
Endireitei os ombros e fitei aquela corja bem direito nos olhos: —Ora, não seja burro! Então você pensa que eu sou tão besta que era capaz de vir até aqui, uma distância enorme, tomando três cidades e desarmando centenas de milhares de soldados alemães, se não tivesse atrás de mim uma grande força militar?...
O capitão matutou, coçando a cabeça, e respondeu: —Não, com franqueza, acho que não! —Bom, nesse caso, eu vou dormir agora. Estou morto de cansaço.
Levantaram-se protestos ruidosos: todos os presentes bradando que os russos iam atacar durante a noite.
—Para mim, tanto faz! disse eu. —Pouco me importa que venham ou deixem de vir, enquanto eu não der uma boa soneca. Boa noite!
Todos os presentes bateram os calcanhares e ergueram a mão saudando à Hitler: «Gute Nackt, Herr Kommandant! »
Na manhã seguinte, quando desci, fui encontrar as coisas em condições verdadeiramente críticas. O alto comando alemão tinha descoberto que a minha coluna era a única força americana que se encontrava aquém de Ludwigslust, que nós tínhamos desarmado 275.000 soldados alemães, segundo a conta dos SS, e que o exército alemão inteirinho estava depondo e entregando as suas armas na cidade de Liibz. Todas as tropas alemãs receberam ordem para retomarem imediatamente as armas, e de nos fuzilarem se tivéssemos a veleidade de resistir,
Trayou-se logo uma discussão de meia hora entre mim e um coronel das SS, que fazia parte do estado maior do corpo. Chegamos por fim a um acordo pelo qual todas as tropas que marchassem para oeste deporiam as armas, ao passo que as que fossem para leste se conservariam armadas. O coronel aceitou essa fórmula porque o seu orgulho o impedia de confessar que houvesse tropas alemãs retirando da frente leste. Foi-se pois embora com a honra satisfeita, enquanto os meus rapazes continuaram fazendo um negócio em que não tinham mãos a medir, nos centros de colheita de armas, que eram agora meia dúzia.
Não tardou, contudo, que rebentassem as cenas de pancada entre os meus soldados e os SS, e só à coragem de alguns dos meus homens se deve que as coisas não tenham ido de mal a peor. A verdade é que essa situação já não podia manter-se por muito mais tempo, e a única solução que nos restava era sairmos da cidade em formação de patrulhas, não só para salvarmos as aparências, como também para escaparmos ao torneio final de tiro ao alvo em que tudo aquilo podia vir a acabar.
Mandei aprontar o meu carro de assalto, e ordenei que ò pelotão de Harry Clark me seguisse. Mas, antes de partir, requisitei dois oficiais dum grupo de sapadores alemães e mandei assentar cada um deles em cima duma das rodas dianteiras do meu carro. «Agora, cavalheiros, se o meu carro bater numa mina,» esclareci eu, «os senhores ficarão tão mortos, quanto qualquer de nós que vamos aqui dentro: talvez até um pouco mais mortos.»
Arrancamos, seguindo pela estrada real que levava a Piau, com os meus dois alemães sentados nos para-lamas como dois perdigueiros, de olhos esbugalhados para a estrada, no esforço de descobrir sinais de minas. Detectores de minas como eu nunca vi, isso eles eram.
Aquela região é ligeiramente acidentada, e à medida que nos íamos aproximando de Piau, íamos vendo a maior distância—e o mesmo se podia dizer de quem marchasse em sentido oposto, isto é, de leste para oeste. A distância, pela nossa frente, já se podia ouvir o tiroteio, e eu comecei a ficar preocupado com o problema do reconhecimento mútuo de russos e americanos. Tinham-me afirmado que todos os tanques russos apresentariam como sinal de identificação um triângulo branco; e que os russos também estavam informados sobre os nossos sinais de identificação. Mas se algum deles se lembrasse de atirar sobre nós, estaria a tal distância que as marcas, afinal de contas, não seriam visiveis.
Quando nos aproximávamos duma cidadezinha, um dos oficiais de sapadores alemães gritou de repente: «Lá vem a nossa artilharia alemã!»
Correndo de leste para oeste ao longo do perfil das colinas que se recortava no céu, via-se uma linha de cavaleiros, de carros de tiro animal, e de soldados marchando a pé, a mais longa que já me foi dado observar. Agarrei no meu binóculo de campanha, dei uma mirada à coluna que além marchava, e passei o binóculo ao alemão que falara: «Ora, torne a olhar, Herr Hauptmann,» disse eu, «e depois me diga desde quando é que ò exército alemão tem cossacos com capuzes de astracã!»
Tínhamos pois chegado até ali—e a questão agora era saber como executar a histórica junção sem dar lugar a que ficasse morta uma porção de gente inocente. Chamei um dos pequenos jipes, trepei no radiador do carro empunhando uma enorme bandeira branca, e rompi caminho por ali abaixo até a cidade. Ao darmos volta a uma esquina, que vejo eu de repente, senão um major russo que estava examinando um mapa! Pulei do carro abaixo, bati os calcanhares em continência e berrei, em russo macarrônico, com toda a força dos meus pulmões: « Ya Amerikanitz Oberlitnantl» Trocamos um forte aperto de mão.
E assim foi que se fez, às 9 h 25 do dia 3 de maio de 1945, a junção entre as forças russas e americanas ao norte de Berlim. Era o primeiro contacto entre os aliados ocidentais e orientais na margem direita do Elba.
Irradiei logo ordem para que o Harry trouxesse para ali os carros restantes, e depois o major russo guiou-nos através das suas tropas até à presença do coronel. O exército russo era uma coisa que não tem termo de comparação: eu esperava encontrar uma máquina de guerra manobrada por homens de cara dura e provida duma enormidade de equipamento motorizado: mas o que me aparecia agora pela frente era ainda mais confuso do que o exército americano! Verdadeira con-glomeração de cavalos, de caminhões alemães, de velhos canhões de campanha enferrujados, cossacos, espingardas-me-tralhadoras, motocicletas... Parecia não existir em tudo aquilo qualquer sistema, e o pessoal entrava e saía da forma à vontade, ao que parece sem esperar ordens, e sem motivo bem definido. Homem sim homem não, era um oficial; e todos riam, saudavam, fazendo uma algazarra ininte-ligivel—enquanto pela nossa parte nós ríamos, saudávamos, gritávamos, tornávamos a saudar, acenávamos com as mãos, e isto repetindo-se indefinidamente.
Acabamos encontrando o coronel: eu esperava ver um russo enorme, com o peito coberto de medalhas, e de espin-garda-metralhadora em punho: mas o que me surgiu pela frente foi um sujeito com ares de fazendeiro, guiando uma carruagem puxada por uma parelha de cavalos, como se estivesse no Central Park de Nova York num domingo de manhã! Vinha ao lado dele, na boleia, uma moça fardada, que mais tarde fiquei sabendo que se chamava Maria, e era enfermeira.
Quando o coronel soube quem nós éramos, e donde vínhamos, saltou da carruagem e começou a dar pulinhos em volta, se desfolhando todo, em sorrisos. Apertamos as mãos e abraçamo-nos com muitas palmadas nas costas. Não demorei muito em compreender que a melhor maneira de impressionar um russo é correr direito a ele, dar-lhe no lombo uma destas palmadas capazes de abater um boi, agarrar-lhe a mão num aperto de ferro, abraçá-lo, mostrar os dentes num riso de hiena, e berrar a plenos pulmões: «Tovarish!» (camarada) ou então «Ya Amerikanitz!» (Eu americano).
A   enfermeira   Maria   veio   até   nós voando, e nós a beijocamos na face e demos mais palmadas nas costas; tinha a estrutura dum bezerro atarracado, e um busto de tamanho 44. Enquanto o pessoal se abraçava e conversava, o coronel puxou do seu mapa russo, que para mim era como se fosse chinês, e eu tirei o meu mapa, e entre um e outro lá conseguimos tirar a limpo por que caminhos eu chegara até ali. Ele se mostrou muito admirado ao saber que eu fora capaz de perdurar as linhas alemãs, e de alcançar não sabe como pela retaguarda a sua coluna ista. Não fora nada má ideia, não, por-ue   os   russos   não   tinham   triângulo ranço nenhum pintado nos seus  tan-ues,   nem  sabiam  conhecer  os  nossos inais distintivos. A prova é que todos lês, ao verem os nossos carros, exclama-am com ar de grande novidade: « Olha, lha,   camarada,—os  carros  amerikanitz têm uma estrela pintada!»
O coronel tirou o seu lápis vermelho marcou no meu mapa, como eu mar-uei no dele, o ponto onde nos tírihamos encontrado. Depois saquei da garrafa de conhaque que levara comigo para algum presente que tivesse de oferecer, e entreguei-a ao coronel, que a passou para as mãos da enfermeira. E tornamos a rir uns para os outros.
Não levando comigo ninguém que soubesse falar russo, tinha em todo caso um soldado que arranhava menos mal o polonês. O coronel mandou chamar um oficial de língua polonesa, major ainda moço. A conversa até ali correra um tanto ou quanto desanimada, mas assim que o polonês apareceu, as coisas reanimaram-se um pouco.
DEPOIS o coronel mandou recado ao general da sua divisão, participando a ocorrência. O comandante da divisão retorquiu, por mensageiro, que estaria conosco sem falta à hora do almoço, e que lhe fossem escolhendo um bom PC. Ò coronel escolheu um bom posto de comando, conforme pedido, e o Harry e eu, com cerca de dez majores e capitães russos, acompanhados da enfermeira Maria, pusemo-nos a caminho do almoço no PC.
Eu só queria que o nosso Governo Militar pudesse ter visto de que jeito os russos se instalam em um novo PC! O coronel relanceou o olhar pelas casas circunvizinhas, escolheu a melhor de todas, e disse: «Eu fico com aquela.» Imediatamente alguns cossacos galoparam em direção à casa, pularam dos cavalos em terra, e entraram sem detença na casa. Ouviram-se logo alguns estrondos significativos, vidros quebrados, madeiras rachando (talvez alguma porta que estava trancada), um estampido maior, um berro—e a porta da rua se tornou a abrir: dois ajemães já de Idade saíram voando, manifestamente impelidos por uma sólida bota de soldado. Mal eles • tinham dado o fora, já surgia um cossaco na porta carregando um guri pelo pescoço e pelos fundilhos das calças. Com isto a entrada ficou desimpedida. Ainda se ouviram mais alguns estrondos lá dentro, de portas arrombadas e vidros estilhaçados, e o novo PC ficou à nossa disposição.
Quando entramos na sala de estar, já estavam dispostas em cima da mesa todas as compotas de fruta encontradas na despensa. Daí a pouco entravam duas moças russas de bela aparência, carregando uma grande travessa de ovos fritos, e outros comestíveis. Não tardei em saber que uma era «cabo» de infantaria, e a outra «capitão» de cavalaria.
O coronel deu entrada na casa, e mostrou-se satisfeito com o que seus olhos viram. Pegou então na garrafa de conhaque que eu trouxera, e noutra que o Clark tinha dado, e encheu todos os copos, que eram dos de água. Estava eu meditando em quanto via, quando de repente todos os oficiais presentes se puseram de pé, e o coronel bradou numa voz trovejante, erguendo bem alto o seu copo: «Trrrruman, Staaalin, Churchillll!» Todos os convivas entrechocaram os copos demoradamente.
Beberam. E digo beberam no sentido próprio, porque todos eles tragaram duma só vez o seu copo-de-água cheio de conhaque. Clark e eu tomamos uma boa golada, comprida, que me deixou a garganta ardendo durante alguns minutos. Os russos desataram a rir estrondosamente, dando murros uns aos outros, e deixando-nos entender que os americanos eram uns maricas, só porque não éramos capazes de tragar um golinho de conhaque...
Senti estremecer no túmulo as cinzas dos heróis do Far West, e tornou-se-me evidente que o prestígio da «fronteira» americana de outras eras dependia agora inteiramente de nós. Harry e eu nos pusemos de pé e despejamos os nossos copos de um só trago: depois tombamos como que fulminados, com os olhos lacrimejantes, tentando dar a impressão de que era aquilo mesmo que nós desde o começo tencionávamos fazer...
Mas logo a seguir, que vejo eu ? Outro grande copo em frente de cada um de nós, desta vez cheio de vodca, e todos os russos se pondo de pé. Erguemo-nos bem depressa, ainda que um tanto cambalean-tes, e o coronel propôs outra saúde: «Améééríka, Rúúússia,, Inglaterrrra!» E tornamos a despejar os copos. Esse negócio continuou assim, repetindo-se cada vez que um novo oficial entrava na sala, até que eu me senti pairando no ar, mais alto que um balão.
A certa altura oferecemos ao coronel um maço de cigarros, e esse simples gesto de cortesia levou-nos a compreender melhor por que é que tantos milhões de alemães vinham fugindo diante dos russos. O coronel pôs-se a remexer em todos os bolsos, mas não pôde achar neles os cigarros russos que em troca nos queria oferecer. Tornou-se evidente que estava em jogo ali a boa-vontade internacional; o nosso coronel resolveu chamar um cabo e murmurou algumas palavras mágicas no ouvido dele. O cabo reuniu logo uma força de meia dúzia de soldados, e saiu. Dois minutos depois, ouvi lá fora um grande banzé, e daí a pouco entrava o cabo com oito maços de cigarros alemães, que entregou ao coronel. Este por sua vez passou-os para as nossas mãos com grandes mostras de magnanimidade: «São alemães,» disse ele, «mas muito bons!»
Pouco depois dava entrada na sala o comandante da divisão. Era homem de inteligência incontestavelmente superior, e tivemos uma conversa que nunca hei-de esquecer.' Expliquei-lhe que o meu general me tinha mandado ali para conduzir um membro do comando russo até o quartel general americano. A resposta do comandante foi que ele mesmo iria conosco.
Fiz-lhe saber então que, entre o ponto onde estávamos e as linhas americanas, ainda havia muitos alemães em armas. O general mostrou-se bastante contrariado ao saber que eu não desarmara todos os 'alemães entre o Elba e o Báltico. Tive : que esclarecer que trouxera menos de cem homens, e ele aceitou minha explicação, acrescentando pela sua parte alguns comentários relativos às dificuldades muito maiores que os russos encontravam, forçados como se viam a combater para fazer prisioneiros. Fiz-lhe notar que nós também tínhamos tido que travar algumas batalhas desde o nosso desembarque na Normandia.
Esse comandante de divisão disse-me, finalmente, que convidasse o meu general a ir encontrar-se com ele na igreja de Lübz. Eu tinha agora que regressar a Ludwigslust com esse recado, levando em minha companhia o major que falava polonês, e que estava ainda muito ocupado fazendo saúdes para a direita e para a esquerda.
A guerra ficara totalmente suspensa durante a cerimônia do nosso almoço, mas, acabado este, ela recomeçou. Até aquele momento eu estivera matutando como é que os russos podiam aguentar tanta bebida, e só então achei a resposta: eles não aguentam, não... Vi o comandante da coluna mista dar a sua ordem de ataque: saiu cambaleando da casa para o campo onde os seus oficiais estavam reunidos, todos de olho alerta e de caderno de notas em punho, esperando ordens. O comandante ficou ali um momento, ergueu o mapa—de costas viradas para os oficiais, de tal modo que nenhum deles o podia ver—e começou a gaguejar qualquer coisa em que vagamente se podiam perceber as palavras: «Marchamos deste lugar aqui, para aquele lugar ali,» apontando sempre para o mapa que só ele podia ver, e mais ninguém. Eu, que não entendo muito o russo, compreendi aquelas instruções tão bem, ou tão mal, como qualquer dos russos ali presentes,
O comandante da coluna continuou assim mais algum tempo, até que os oficiais se entreolharam como quem diz: «Ele está na chuva outra vez...», meteram os livros de notas no bolso, e desataram a bradar ordens que eu interpretei mais ou menos desta forma: «Oh, pessoal! Os patifes estão ali daquele lado. Vamos a eles!» E assim, alguns milhares de russos despreocupados dispararam as armas para o ar, e uns para os outros, e a estranha coluna lá foi ondulando pela estrada abaixo.
Quando já estava a caminho de Lúbz, olhei por acaso em volta, e por pouco que não caio da torrinha abaixo: no assento do segundo artilheiro do carro de assalto de Clark, espetado como um fantoche, vinha o major russo embriagado! Com uma toalha pousada num braço e de enorme navalha de barba em punho, rindo como um perdido, fazia esforços sobrehumanos para raspar o queixo do artilheiro...
Chegamos por fim a Lübz, e desta vez não me foi preciso suar tanto para atravessar as linhas alemãs. As colunas de tanques russos já tinham tomado Neustadt. Chegados aqui, um capitão russo me chamou de parte, ofereceu-me bebidas, e forçou-me a partilhar com ele uma galinha. Tinha ao lado um major alemão dos SS, que trouxera prisioneiro no seu carro, e, enquanto comeu e bebeu, entre-tinha-se de vez em quando em dar-lhe socos e pontapés. Quando cheguei enfim a Ludwigslust, corri logo a apresentar relatório da missão que completara.
Resta-me acrescentar que no dia seguinte, pela tarde, fui chamado ao PC do general Gavin, que numa breve cerimônia me pregou no peito a Estrela de Prata, coisa que me fez sentir bastante orgulhoso, por vir duma divisão que não era a minha. Quem usa a medalha sou eu, mas quem a ganhou foi a «Tropa B »—e é em nome desta que eu a trago ao peito.






Texto extraído da revista Seleções de Reader's Digest de dezembro de 1945





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